terça-feira, 5 de maio de 2020

Minutos de leitura (XI)

"Era um rapaz. Tinha nascido nos montes, 
entre fraguedos bravios, pinheiros e águas claras. 
A sua casa de granito ficava à sombra
de pedregulhos de rosto austero e de carão
 zangado, alguns enormes e esmagantes, como
 se restos, ainda, do castelo do emir mouro (...)

Ele sabia, nos seus seis anos, espigados, 
que o dinheiro não comprava o sonho
 e continuava as suas brincadeiras de pensar 
e fingir, à beira do riozinho, de caudal
 pedregoso e apertado, de corrente cantante
 - a espraiar-se no poço dos paus e debaixo
 da ponte romana, entre os olmos. 

Na margem, havia violetas selvagens 
e outras flores, pequeninas e delicadas, 
de que não sabia o nome.
 Ali, era um dos seus poisos predilectos.
Gostava de ver os alfaiates, de longas pernas,
a cerzir e a passajar as águas claras, quietas
e pouco fundas, onde chapinava e caçava rãs,
e que na sua procura pouco fundura (mistério!)
reflectiam toda a altura dos olmos.

Também gostava de sentir o silêncio,
que media pelo rastejar das lagartixas,
e de espreitar o céu, com nuvens brancas
pousadas no como do monte,
mas que, quando ele o subia e julgava
aproximar-se delas, ficavam altas e inacessíveis,
no azul. (...)

Muito gostava de ter asas e poder voar!
Isso sim, seria ser livre.

Por isso sabia ninhos. (...)
Do pinhal, vinham poupas, piscos, os gaios
com o precioso azul-esverdeado das suas asas,
bandos de pardais, rolas e pombas. Os pássaros 
faziam uma roda de asas sobre o campo
verde. Só o cuco ficava lá para os lados da
Abelheira, mas misturava o seu cu-cu, malicioso
e insistente, aos trilos, pios e trri-chis-chis e
arrulhos das rolas e das pombas.

Debaixo do céu azul e rodeado de asas,
o rapaz acordava, com aquele ritual,
a Primavera, que desabrochava em todo 
o seu esplendor. Bastava olhar. Nos montes
era já a ressurreição. Flores de sargaço (...)
de olhinho dourado.

E as borboletas, como flores inquietas
e desassossegadas, com o seu branco, canela
ou castanho-fogo, finalmente caligrafado
e japonês, espalhavam bençãos aqui e ali,
e também sobre o beijinho da giesta,
que concentrava o ouro da manhã.
juntavam-se ao amarelo e roxo do pampilho
e soajo."

O rapaz que sabia acordar a Primavera / Luísa Dacosta; il. Cristina Valadas. Alfragide: Asa, 2007

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