"— É aqui.
Todos ficaram
encantados. A casa era um pouco menor. Mamãe ajudada por Totóca destorceu um
arame que prendia o portão e foi aquele avança. Glória soltou a minha mão e
esqueceu-se que estava ficando mocinha. Desabalou à carreira e abraçou a
mangueira.
— A mangueira é
minha. Peguei primeiro. Antônio fez a mesma coisa com o pé de tamarindo. Não
sobrara nada para mim. Olhei quase chorando para Glória.
— E eu, Godóia?
— Corre lá no fundo. Deve ter mais
árvore, bobo. Corri, mas só encontrei um capinzal crescido. Um bando de
laranjeira velha e espinhuda. Junto do valão tinha um pequeno pé de Laranja
Lima.
Fiquei desapontado. Todos estavam
visitando os cômodos e determinando para quem seriam os quartos.
Puxei a saia de Glória.
— Não tinha nada mais.
— Você não sabe procurar direito.
Espere aí que vou achar uma árvore para você.
E logo depois ela veio comigo.
Examinou as laranjeiras.
— Você não gosta daquela? Olhe que é
uma bela laranjeira.
Não gostava de nenhuma mesmo. Nem
daquela. Nem daquela e nem de nenhuma. Todas tinham muito espinho.
— Pra ficar com essas feiúras eu
ainda preferia o pé de Laranja Lima.
— Onde?
Fomos lá.
— Mas que lindo pezinho de Laranja
Lima! Veja que não tem nem um espinho. Ele tem tanta personalidade que a gente
de longe já sabe que é Laranja Lima. Se eu fosse do seu tamanho, não queria
outra coisa.
— Mas eu queria um pé de árvore
grandão.
— Pense bem, Zezé. Ele é novinho
ainda. Vai ficar um baita pé de laranja.
Assim ele vai crescer junto com
você. Vocês dois vão se entender como se fossem dois irmãos. Você viu o galho?
É verdade que o único que tem, mas parece até um cavalinho feito pra você
montar.
Estava me sentindo o maior
desgraçado da vida. Me lembrava da garrafa de bebida que tinha a figura dos
anjos escoceses. Lalá disse, esse sou eu. Glória apontou outro para ela. Totóca
pegou outro pra ele e eu? Eu fiquei sendo aquela cabecinha lá atrás, quase sem
asa. O quarto anjo escocês que nem era um anjo inteiro... Sempre eu tinha que
ser o último. Quando crescesse iam ver só. Ia comprar uma selva amazônica e
todas as árvores que tocavam no céu, seriam minhas. Compraria um armazém de
garrafas cheias de anjo e ninguém ganhava um pedaço de asa.
Emburrei. Sentei no chão e encostei
a minha zanga no pé de Laranja Lima.
Glória se afastou sorrindo.
— Essa zanga não dura, Zezé. Você
vai acabar descobrindo que eu tinha razão.
Cavouquei o chão com um pauzinho e
começava a parar de fungar. Uma voz falou vindo de não sei onde, perto do meu
coração.
— Eu acho que sua irmã tem toda a
razão.
— Sempre todo mundo tem toda a
razão. Eu é que não tenho nunca.
— Não é verdade. Se você me olhasse
bem, você acabava descobrindo.
Eu levantei assustado e olhei a
arvorezinha. Era estranho porque sempre eu conversava com tudo, mas pensava que
era o meu passarinho de dentro que se encarregava de arranjar fala.
— Mas você fala mesmo?
— Não está me ouvindo?
E deu uma risada baixinha. Quase saí
aos berros pelo quintal. Mas a curiosidade me prendia ali.
— Por onde você fala?
— Árvore fala por todo canto. Pelas
folhas, pelos galhos, pelas raízes. Quer ver? Encoste seu ouvido aqui no meu
tronco que você escuta meu coração bater.
Fiquei meio indeciso, mas vendo o
seu tamanho, perdi o medo. Encostei o ouvido e uma coisa longe fazia
tique... tique...
— Viu?
— Me diga uma coisa. Todo mundo sabe
que você fala?
— Não. Só você.
— Verdade?
— Posso jurar. Uma fada me disse que
quando um menininho igualzinho a você ficasse meu amigo, que eu ia falar e ser
muito feliz.
— E você vai esperar?
— O quê?
— Até eu me mudar. Vai demorar mais
de uma semana. Será que você não vai se esquecer de falar nesse tempo?
— Nunca mais. Isto é, para você só.
Você quer ver como eu sou macio?
— Como é que...
— Monte no meu galho.
Obedeci.
— Agora, dê um balancinho e feche os
olhos.
Fiz o que mandou.
— Que tal? Você alguma vez na vida
teve cavalinho melhor?
— Nunca. É uma delícia. Até vou dar
o meu cavalinho Raio de Luar para meu irmão menor. Você vai gostar muito dele,
sabe?
Desci adorando o meu pé de Laranja
Lima.
— Olhe, eu vou fazer uma coisa.
Sempre quando puder, antes de mudar, eu venho dar uma palavrinha com você...
Agora preciso ir, já estão de saída lá na frente.
— Mas, amigo não se despede assim.
— Psiu! Lá vem ela.
Glória chegou mesmo na hora em que
eu o abraçava.
— Adeus, amigo. Você é a coisa mais
linda do mundo!
— Não falei a você?
— Falou, sim. Agora se vocês me
dessem a mangueira e o pé de tamarindo
em troca da minha árvore, eu não
queria.
Ela passou a mão nos meus cabelos,
ternamente.
— Cabecinha, cabecinha!...
Saímos de mãos dadas.
— Godóia, você não acha que sua
mangueira é meio burrona?
— Ainda não deu para saber, mas
parece um pouco.
— E o pé de tamarindo de Totóca?
— É meio sem jeitão, por quê?
— Não sei se posso contar.
Mas um dia eu conto um milagre para você,Godóia".
O meu pé de laranja lima / José Mauro de Vasconcelos. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
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