"Como vinham
com a cabeça no ar, a discorrer, a pensar, o Ouriço e o Coelho perderam-se no
caminho de regresso e só chegaram a casa à noite. Já a Lua iluminava o Largo.
A Toupeira
e o Caracol tinham acabado de juntar num montinho seis ramos grossos que não
eram grandes nem pequenos, mas assim-assim, mesmo ao lado dos fios de
trepadeira que o Chapim recolhera.
- Onde
estão as vossas rolhas? – perguntou a Toupeira quando os viu chegar sem nada,
de patas a abanar.
- Ah! As
rolhas… - disse o Ouriço
- Ah! As
rolhas… - disse o Coelho
-
Perderam-nas? Foram assaltados? Não encontraram nenhuma?
- Fomos
atacados. Os dois – respondeu o Coelho.
- Nem
queiram saber – acrescentou o Ouriço. – Encontrou-nos o Amor, seja lá isso o
que for. Está no ar. Não o encontraram?
- Nós não –
disse o Caracol. – Os ramos que apanhamos estavam todos no chão. E talvez o
Amor seja uma coisa que se apanha quando se anda a apanhar rolhas.
- Nada disso.
É uma coisa que se apanha quando estamos a olhar para alguém e nos cai uma
pinha na cabeça- disse o Coelho.
- Ou quando
estamos a olhar para alguém e nos entra um cisco num olho – acrescentou o
Ouriço.
- O melhor
é dizer que é uma coisa que se apanha – concluiu a Toupeira, para poderem
avançar.
O Chapim
regressava com o seu último carregamento de bagas e abriu o bico para falar
quando ouviu aquilo e deixou cair as bagas.
- O Amor!
Chhhhh! – disse ele. – Acontece a quem não tem nada que fazer. Nunca ninguém se
apaixonou quando andava a apanhar bagas e sementes.
- Mas olha
que ele anda no ar – garantiu o Ouriço. – Foi o que disse a Ouriça encantadora
que conheci: «Se é Primavera e o Amor está no ar…»
O Chapim,
pelo não, pelo sim, voou do ramo onde estava e pousou ao lado deles. Se o Amor
andava no ar, era mais seguro ter as patas em terra firme.
- E também
está no chão. Ou nós não teríamos apanhado – disse o Coelho.
O Chapim
voltou a subir para o ramo.
- Não se
aproximem muito, por favor, que isso pode ser contagioso – pediu ele.
A Toupeira
assoou o nariz. Estava constipada. Ficava sempre assim quando apanhava o
primeiro sol da Primavera. Não estava habituada. Depois perguntou:
- O que te
aconteceu afinal, ó Ouriço?
_ Ela
cantou a tal canção e entrou-me o cisco no olho. Só podia abrir um olho e só
via metade do que se estava a passar. Ou nem isso – disse o Ouriço.
- E então?
O Amor é cego – considerou a Toupeira. – Nunca ouviste dizer?
- Foi o
Amor à primeira falta de vista – disse o Caracol. – Também já ouvi falar.
- A mim foi
uma pancada na cabeça – lembrou o Coelho. – O Amor atira pinhas?
- Faz o que
for preciso. Isso eu sei – respondeu a Toupeira. – Talvez estivesses distraído
quando devias estar a olhar para a Coelha. O Amor é assim. Atchim!
- Eu diria mais:
É assim o Amor – acrescentou o Caracol.
A Toupeira
coçou a cabeça.
- O que
sentem vocês? – perguntou, a tentar compreender.
Respondeu o
Coelho, que foi o mais rápido:
- Sinto-me
fraco, sem força nas patas, tão levezinho que uma brisa me pode arrastar.
Suspiro, tenho falta de ar. Ah, e também estou muito descoelhado. O que é isso?
Aí está, é uma que se sente. E isto são só algumas das coisas de que me lembro
assim de repente.
- Sim, isso
é o Amor. O Amor é assim – concedeu a Toupeira. – E tu, Ouriço?
- Acho que
engoli uma borboleta – respondeu ele. – Ou duas. Ou mil. Sinto que há mil
borboletas a voar de um lado para o outro dentro de mim.
- Dentro de
ti não há espaço para as borboletas voarem – disse o Caracol.
- Eu sei
que não há espaço – concordou o Ouriço. – É por isso que as sinto. Vão contra
tudo com a pontinha das asas.
- Ah, isso
é o Amor – disse a Toupeira, embevecida.
O Chapim
afastou-se para mais longe.
- Não digam
alto a palavra «Amor», ou ele cai-nos em cima – aconselhou ele. É melhor dizermos
«aquilo que vocês sabem». Eu, pelo menos é o que digo.
Aquilo que
vocês sabem! Ora, ora. O Amor era justamente «aquilo que eles não sabiam».
Por outro
lado, o Chapim tinha razão. Quando diziam a palavra «amor», mesmo baixinho, ela
ficava a tilintar no ar durante algum tempo. Era agradável, mas arriscavam-se a
atrair o Amor, que chegava a correr e lhes batia à porta. «Quem é?»,
perguntavam eles a meio da noite. Não havia resposta. E, no entanto, sentia-se
ali uma presença. Era o Amor. Ele chegava e fazia os namorados soar. Não
falava, ninguém o via, não cheirava a nada, ou era a isso (a nada) que ele
cheirava. Só se sentia. Era o Amor. Abriam a porta e ele entrava.
- Toupeira,
tu que leste tantos livros, diz-nos o que é o Amor – pediu o Coelho.
- Os livros
também não sabem o que é o Amor. Contam histórias de Amor, coisas que acontecem
por causa dele. Umas acabam bem, outras mal e outras assim-assim. Mas o Amor…
Bem, vou
para dentro. Tenho tanto que fazer, tantas coisas para arrumar…"
" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.
Imagem: Copyright: Carl Brenders
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