segunda-feira, 25 de maio de 2020

Minutos de leitura (XXV)


"Como vinham com a cabeça no ar, a discorrer, a pensar, o Ouriço e o Coelho perderam-se no caminho de regresso e só chegaram a casa à noite. Já a Lua iluminava o Largo.
A Toupeira e o Caracol tinham acabado de juntar num montinho seis ramos grossos que não eram grandes nem pequenos, mas assim-assim, mesmo ao lado dos fios de trepadeira que o Chapim recolhera.

- Onde estão as vossas rolhas? – perguntou a Toupeira quando os viu chegar sem nada, de patas a abanar.
- Ah! As rolhas… - disse o Ouriço
- Ah! As rolhas… - disse o Coelho
- Perderam-nas? Foram assaltados? Não encontraram nenhuma?
- Fomos atacados. Os dois – respondeu o Coelho.
- Nem queiram saber – acrescentou o Ouriço. – Encontrou-nos o Amor, seja lá isso o que for. Está no ar. Não o encontraram?
- Nós não – disse o Caracol. – Os ramos que apanhamos estavam todos no chão. E talvez o Amor seja uma coisa que se apanha quando se anda a apanhar rolhas.
- Nada disso. É uma coisa que se apanha quando estamos a olhar para alguém e nos cai uma pinha na cabeça- disse o Coelho.
- Ou quando estamos a olhar para alguém e nos entra um cisco num olho – acrescentou o Ouriço.
- O melhor é dizer que é uma coisa que se apanha – concluiu a Toupeira, para poderem avançar.
O Chapim regressava com o seu último carregamento de bagas e abriu o bico para falar quando ouviu aquilo e deixou cair as bagas.
- O Amor! Chhhhh! – disse ele. – Acontece a quem não tem nada que fazer. Nunca ninguém se apaixonou quando andava a apanhar bagas e sementes.
- Mas olha que ele anda no ar – garantiu o Ouriço. – Foi o que disse a Ouriça encantadora que conheci: «Se é Primavera e o Amor está no ar…»

O Chapim, pelo não, pelo sim, voou do ramo onde estava e pousou ao lado deles. Se o Amor andava no ar, era mais seguro ter as patas em terra firme.
- E também está no chão. Ou nós não teríamos apanhado – disse o Coelho.
O Chapim voltou a subir para o ramo.
- Não se aproximem muito, por favor, que isso pode ser contagioso – pediu ele.
A Toupeira assoou o nariz. Estava constipada. Ficava sempre assim quando apanhava o primeiro sol da Primavera. Não estava habituada. Depois perguntou:
- O que te aconteceu afinal, ó Ouriço?
_ Ela cantou a tal canção e entrou-me o cisco no olho. Só podia abrir um olho e só via metade do que se estava a passar. Ou nem isso – disse o Ouriço.
- E então? O Amor é cego – considerou a Toupeira. – Nunca ouviste dizer?
- Foi o Amor à primeira falta de vista – disse o Caracol. – Também já ouvi falar.
- A mim foi uma pancada na cabeça – lembrou o Coelho. – O Amor atira pinhas?
- Faz o que for preciso. Isso eu sei – respondeu a Toupeira. – Talvez estivesses distraído quando devias estar a olhar para a Coelha. O Amor é assim. Atchim!
- Eu diria mais: É assim o Amor – acrescentou o Caracol.

A Toupeira coçou a cabeça.
- O que sentem vocês? – perguntou, a tentar compreender.
Respondeu o Coelho, que foi o mais rápido:
- Sinto-me fraco, sem força nas patas, tão levezinho que uma brisa me pode arrastar. Suspiro, tenho falta de ar. Ah, e também estou muito descoelhado. O que é isso? Aí está, é uma que se sente. E isto são só algumas das coisas de que me lembro assim de repente.
- Sim, isso é o Amor. O Amor é assim – concedeu a Toupeira. – E tu, Ouriço?
- Acho que engoli uma borboleta – respondeu ele. – Ou duas. Ou mil. Sinto que há mil borboletas a voar de um lado para o outro dentro de mim.
- Dentro de ti não há espaço para as borboletas voarem – disse o Caracol.
- Eu sei que não há espaço – concordou o Ouriço. – É por isso que as sinto. Vão contra tudo com a pontinha das asas.
- Ah, isso é o Amor – disse a Toupeira, embevecida.
O Chapim afastou-se para mais longe.
- Não digam alto a palavra «Amor», ou ele cai-nos em cima – aconselhou ele. É melhor dizermos «aquilo que vocês sabem». Eu, pelo menos é o que digo.

Aquilo que vocês sabem! Ora, ora. O Amor era justamente «aquilo que eles não sabiam».
Por outro lado, o Chapim tinha razão. Quando diziam a palavra «amor», mesmo baixinho, ela ficava a tilintar no ar durante algum tempo. Era agradável, mas arriscavam-se a atrair o Amor, que chegava a correr e lhes batia à porta. «Quem é?», perguntavam eles a meio da noite. Não havia resposta. E, no entanto, sentia-se ali uma presença. Era o Amor. Ele chegava e fazia os namorados soar. Não falava, ninguém o via, não cheirava a nada, ou era a isso (a nada) que ele cheirava. Só se sentia. Era o Amor. Abriam a porta e ele entrava.
- Toupeira, tu que leste tantos livros, diz-nos o que é o Amor – pediu o Coelho.
- Os livros também não sabem o que é o Amor. Contam histórias de Amor, coisas que acontecem por causa dele. Umas acabam bem, outras mal e outras assim-assim. Mas o Amor…
Bem, vou para dentro. Tenho tanto que fazer, tantas coisas para arrumar…"

" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.  
Imagem: Copyright: Carl Brenders

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