"Recém-chegado
e ignorando completamente as línguas do Levante, Marco Polo não podia
exprimir-se de outro modo que não fosse retirando objectos das suas malas:
tambores, peixes salgados, colares de dentes de facóquero, e indicando-os com
gestos, saltos, gritos de espanto ou de horror, ou imitando o latido do chacal
e o piar da coruja. (…)
Mas o que
tornava preciosos a Kublai todos os factos ou notícias referidos pelo seu
inarticulado informador era o espaço que ficava à volta deles, um vazio não
preenchido por palavras. As descrições das cidades visitadas por Marco
Polo tinham esse dom: podia andar-se por elas com o pensamento, nelas
podíamos perder-nos, para apanhar fresco, ou fugir a correr. Com o passar do
tempo, nos relatos de Marco as palavras foram substituindo os objectos e os
gestos: primeiro exclamações, nomes isolados, áridos verbos, depois pedaços de
frase, discursos ramificados e frondosos, metáforas e hipérboles. (…)
Kublai Kan
apercebera-se de que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a
paisagem de uma para a outra não implicasse uma viagem mas sim uma troca de
elementos. Agora, de todas as cidades que Marco lhe descrevia, a mente do Grão
Kan partia por sua conta e risco, e desmontada a cidade peça a peça,
reconstruía-a de outro modo, substituindo ingredientes, deslocando-os,
invertendo-os. Marco continuava a informá-lo da sua viagem, mas o imperador já
não o ouvia, interrompia-o: – De agora em diante serei eu a descrever as
cidades e tu verificarás se existem e se são como eu as pensei. (…)
Do número
das cidades imagináveis temos de excluir aqueles cujos elementos se somam sem
um fio condutor que os ligue, sem uma regra interna, uma perspectiva, um
discurso. São cidades como sonhos: todo o imaginável pode ser sonhado mas
também o sonho mais inesperado é um enigma que oculta um desejo, ou o seu
contrário, um terror. As cidades como os sonhos são construídos de desejos e de
medos, embora o fio do seu discurso seja o secreto, as suas regras absurdas, as
perspectivas enganosas, e todas as coisas escondem outra. (…)
O Grão Kan
contempla um império recoberto de cidades que têm peso sobre a terra e sobre os
homens, a abarrotar de riquezas e de movimento, repleto de ornamentos e de
incumbências, complicado de mecanismos e de hierarquias, inchado, largo,
pesado.
“É o próprio peso que está a esmagar o império”, pensa
Kublai, e nos seus sonhos agora surgem cidades leves como papagaios de papel,
cidades perfumadas como rendas, cidades transparentes como mosquiteiros,
cidades nervuras de folhas, cidades linhas da mão, cidades filigrana para ver
através da sua opaca e fictícia espessura.
Imagem: Copyright - Torre de Babel de Pieter Bruegel, 1563, Museu de Arte, Viena (Áustria)
Sem comentários:
Enviar um comentário