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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Um mês com... Agustina Bessa-Luís

 
"Lourença tinha três irmãos. Todos aprendiam a fazer habilidades como cãezinhos, e tocavam guitarra ou dançavam em pontas dos pés. Ela não. Era até um bocado infeliz para aprender, e admirava-se de que lhe quisessem ensinar tantas coisas aborrecidas e que ela tinha de esquecer o mais depressa possível. O que mais gostava de fazer era comer maçãs e deitar-se para dormir. Mas não dormia. Fechava os olhos e acontecia-lhe então uma aventura bonita e conhecia gente maravilhosa. Eram as pessoas que ela via no cinema ou que ela já tinha encontrado em qualquer parte, mas que não sabia quem eram. Não gostava de ninguém que se pusesse entre ela e a imaginação, como um muro, e a não deixasse ver as coisas de maneira diferente. Não gostava que lhe tocassem e, sobretudo, que a gente grande pesasse com a grande em cima da sua cabeça. Apetecia-lhe morder-lhes e fugir depressa. Mas não fazia nada disso. Ficava quieta e olhava para a frente dela, cheia de seriedade. Isto tinha o efeito de causar estranheza, e diziam sempre que ela era uma menina obediente e sossegada. Mas retiravam a mão. Tinham-lhe posto o nome de "dentes de rato". porque os dentes de rato eram pequenos e finos, e pela mania que ela tinha de morder a fruta que estava na fruteira e deixar lá os dentes marcados.
    - Já aqui andou a "dentes de rato" - diziam os da casa, escandalizados. Viravam e reviravam as maçãs, e em todas havia duas dentadinhas já secas e onde a pele mirrara. Era uma mania que ninguém podia explicar. (...)

   De repente aborreceu-se de usar bibes ou o uniforme preto que a mãe achava tão distinto. Vestia Lourença à inglesa, o que era muito desengraçado. Começou a ter birras que lhe davam para não comer. A mãe não sabia como lidar com ela. Já não era Dentes de Rato, e a sensatez dela evaporara-se. (...)
   Só o pai a tratava como dantes, sem muita confiança; mas olhava às vezes para ela como se a vida parasse à volta e só Lourença estivesse viva no mundo. Raramente lhe dava um beijo e, se o fazia, era com respeito e alguma severidade. Não era um pai camarada, como se usava ser; Lourença pensava que um pai desses não lhe convinha. Não enganavam ninguém, e notava-se logo que eram tão velhos como os outros. Ela preferia que o pai fosse assim, uma pessoa um bocado doutro tempo e que falava de coisas completamente desinteressantes - do preço do vinho e da crise da lavoura. Tinha segredos com a mãe, mas isso fazia parte do direito de serem os pais e não o quaisquer outras pessoas. (...)
   
   À noite, estando aberta a janela do quarto, uma pomba veio pousar no peitoril. Começou a dar voltas e a arrulhar. "É o meu presente de anos" - pensou Lourença. "Alguém o mandou, de muito longe..." O coração dela, oprimido e cheio de inconfessáveis tristezas, encontrou de repente consolação. Achou que o mundo inteiro esperava por ela, e os mares todos, com as suas tempestades, podiam ficar calmos porque ela assim queria que fosse."

Dentes de Rato / Agustina Bessa-Luís.Lisboa: Relógio d ´Água, 2017.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Um mês com... Agustina Bessa-Luís

 


"Esposende tinha duas almas: ado sul, que era piscatória, e a do norte, que era banhista. Uma era feita de gente natural e misteriosa, com dramas e alegrias rápidas, como se um vento cínico e audaz, vindo de muito longe, talhasse a sua história. A alma do sul já existia quando o reizinho D. Sebastião jogava às laranjas com os seus cortesãos - e as comia. Porque o príncipe era guloso; em apetites de mesa a arrancadas de estribo perdeu a vida, e nós a independência e a lei dela. O que lá vai lá vai!

Quando eu fui pela primeira vez a Esposende, achei que sucedia alguma coisa de solene; como um rito. Era em Julho. Nas noites em que o calor abrasava, vinha do rio um hálito de vasa. Como se o princípio do mundo rompesse o cristal das areias e borbulhasse uma vida espessa e cega, no lodo. A motora do peixe descia pela corrente, os homens iam calados. Via-se o casco na linha da água, como uma faca abrindo a pele da noite. Os cães ladravam. A alma do sul estava acordada. Desde tempos muito antigos ela tinha aquele pacto com o mar, sobrevivia nos seus flancos, paciente, lentamente, ajustada à magra colheita de peixe e de sargaço.

A alma do norte floresceu um dia, construiu nos pinhais um chalé branco, pôs-lhe um azulejo azul, botou patamar e alpendre à moda de mestre Raul Lino. Plantaram-se tamarizes na avenida; alguma dama no seu mirante aprendia piano com um senhora do Porto, e tinha um chapéu com cerejas maduras. Distinguia-se: a sua gola de valencianas ficava cheia de grãos de areia quando ela saía à rua.”

 Memória de Esposende. In Vila e concelho de Esposende no IV centenário, 1572-1972, Agustina Bessa-Luís. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Um mês com... Agustina Bessa Luís

 


   Agustina Bessa Luís, é um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea. A Guimarães Editora considerou-a a maior escritora portuguesa. Agustina mais que uma escritora é uma força da natureza, uma respiração sublime sobre os elementos desconexos e contraditórios que é a própria vida. De uma lucidez desconcertante, a sua obra constrói uma catarse sobre o papel do homem na sociedade humana. Com ela descobrimos em diversos livros os alicerces históricos e biográficos de uma cultura, nomeadamente nos seus timings contemporâneos. 

   Se todos somos a circunstância geográfica e cultural do sítio onde nascemos e vivemos, a obra de Agustina é o produto de uma região. Conhecedora da comédia humana, encontra-mos nela aforismos representativos de uma simplificação da vida. Maria Ordoñes, nome onde se escondeu um universo literário e cultural complexo e deslumbrante, começou a sua viagem a 15 de Outubro de 1922. Filha de uma senhora de Zamora e de um pai que pertencia à aristocracia rural do Porto, viveu entre o campo e a cidade, ficando por esta fascinada. Estudou nas Doroteias e divertiu-se nos serões de espetáculos geridos pelo pai e que tanto recebia cinema, como cafés concerto. Aos vinte e dois anos escolheu marido num anúncio de jornal, onde “procurava corresponder-se com alguém inteligente e culto”. O afortunado, com quem partilhou a vida durante várias décadas, Alberto Luís, ordenou a sua escrita e deu-lhe letra de máquina. 

   Agustina, de coração amarantino, o que ousada e modernamente já tinha dado a Amadeo, os contornos de uma ambição futurista da vida, no sentido mais livre possível, deixou-nos em letras apertadas de cadernos manuscritos personagens e atmosferas que nos são familiares. Iniciou-se na escrita, com Mundo Fechado, de 1948 e teve em Sibilia, de 1954, o romance que lhe deu visibilidade. Soubemos há alguns anos, que no início da década de 40, a escritora concluía os até agora desconhecidos Ídolo de Barro e Deuses de Barro, dois livros assinados com nome de ressonâncias maternas: Maria Ordoñes. Ferreira de Castro dizia dela que praticava “a depuração das palavras” e Eduardo Lourenço, que escrevia com “a novidade de um olhar insólito veemente e desarmante”. 

   Escreveu como quem respira, em doses imensas de palavras e livros (mais de sessenta), em romances nada convencionais, o que somos como modo de ser. Dos seus textos saiu a matéria-prima de filmes, como Francisca, Vale Abraão ou o Convento. Participou na vida cívica de modo intenso, tendo dirigido o 1º de Janeiro e o Teatro Nacional D. Maria II. Disse-nos em entrevistas cheias de sabedoria, que gostando dos aplausos, prefere ter graça a ter fama e revela-nos que sendo conhecida, não é muito lida. Dá-nos os seus livros como memória de uma ideia, de uma forma de humanidade, pois uma longa vida não se descreve, pois ninguém a vê passar. 

 Agustina é uma escritora criadora de figuras de uma dimensão muito peculiar e tem-nos dado a voz de uma geografia física e humana capaz de compreender a relação do Homem com os mitos, o simbolismo dos seus valores. Criadora de palavras que nos conduzem a caminhos onde se identificam os percursos da Humanidade, acima do contexto histórico, na procura de uma identidade que o é por si. 

   Da sua obra de ficção, à poesia, ao teatro, às crónicas, ao livro de viagens, aos ensaios a sua obra é uma referência pelo sentido de humor das suas representações, mas pelo modo também frontal como nos faz encarar a realidade. Há nela a procura de entender o quotidiano usando uma sabedoria própria, tirada de uma determinada realidade, mas também uma imensa liberdade que se assume como essencial para se afirmar e descobrir. A liberdade como uma das mais belas concretizações do Homem, embora torneada de elementos nem sempre claros e construídos sobre si próprio. 

   Retemos dela uma ideia de uma luz de quem caminhou ao contrário, da maturidade para a infância, de quem nos ensinou que a vida é demasiado importante para ser levada a sério e que por isso nada mais difícil do que o gesto grave, a dureza do caminho, para os que procuram um lugar de felicidade, de conquista de individualidade. Por isso as fórmulas rápidas e fáceis são inexpressivas de qualquer verdade, pois em cada ser há uma respiração diferente. Nas suas obras, as mulheres de diferentes gerações revelam essa aspiração de humanidade, que condensam o que viveram, o que sonharam, em luta com o real sem se saber se se ousou o suficiente, se a afirmação foi suficiente para chegar a esse momento quase final em algo que se compreendeu. 

   Agustina Bessa-Luís é uma figura maior da nossa escrita, a que convidamos a descobrir e por isso ela foi escolhida para ser alvo de destaque como escritora do mês na Biblioteca. O seu olhar como figura humana pode ser encontrada biograficamente em muitos dos seus livros, como por exemplo em Sonho de Cão ou Dentes de Rato, entre outros. Destacamos pois Agustina, em Outubro, mês do centenário do centenário do seu nascimento em 2022, pela sua dimensão como figura da cultura portuguesa deste século e do passado. Pela escrita, pelos temas, pelo humor e por aquele sorriso de quem já parece ter percebido o sentido das coisas e por isso sorri para o horizonte, como a criança acabada de nascer. O final de Sibila dá-nos essa dimensão de uma forma clara.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Um Mês com... Agustina Bessa-Luís


Mensalmente, será dado destaque a um escritor. Agustina Bessa-Luís celebra este
ano, o centenário do seu nascimento. É uma das grandes figuras da cultura portuguesa e deixou-nos uma obra de grande valor literário e artístico. Ao longo do mês deixaremos algumas ideias e publicações sobre esta importante escritora.

"Todos os meus livros são, afinal, só isso, a oportunidade de milhões de almas, únicas, todas elas, almas de sapinhos cheios de importância de viver. [...] Uns partem um pouco depois de dizerem bom dia, outros ficam até morrer. Todos se continuam naquilo que têm de profundamente entre si - a vocação para serem sós, porém aceites por cada um dos outros. Porque a solidão que me acusam de impor aos meus personagens, como uma grilheta, é apenas a sua individualidade biológica, a exclusividade, a reivindicação superior da sua própria luta. Um homem jamais corresponde a outro homem; as suas reacções e conclusões não equivalem a vivência de outra alma, a experiência do outro eu. O mistério do eu cumpre-se em cada homem de forma única".

 (1) Agustina Bessa-Luís, in Revista "Lusíada", Porto, Outubro - 1955


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (IX)

 "Para salvares uma ideia, não a leves contigo, entrega-a a outras pessoas. A morte deve ser vista como uma entrega de si mesmo ao mundo. Não adianta levar connosco a forma do nosso nariz nem uma bela teoria sobre o tempo, mas sim deixar que a forma do nosso nariz mude o mundo à nossa volta, como terá feito o de Cleópatra, ou que a nossa bela teoria encontre outras cabeças para crescer, melhorar e evoluir. Desejaríamos isso a um filho, creio que o devemos fazer em relação às ideias.
Sublinho o chavão: a vida é uma dádiva. Recebemos algo, transformamos e entregamos, reforçando a ideia popular de que não levaremos nada desta vida. Excepto o que demos.
A nossa barca é onde colocamos a nossa identificação, em que que arca queremos parir, em que direcção. Um homem que pensa em dobradiças viverá em parafusos, num portão ou na porta de um armário de cozinha, um homem que pensa em libertar o Homem  viverá em todos os heróis. Cada um escolhe a sua Terra Santa. O seu lugar para continuar vivo, evoluindo, crescendo, transformando-se. Cada um escolhe o seu Céu, o seu Paraíso ou o seu Inferno. O lugar pelo qual morreria: uma ideia, um filho, uma cadeira, uma pedra, um sonho, um iate, um livro. Depois de escolher a terra para ser enterrado e ressuscitado, nela continuaá a ser outra coisa e, ao mesmo tempo, o que sempre foi.
É curioso que a maior parte das pessoas identifica a infância como o tempo mais feliz das suas vidas, mas quando lhes perguntamos se gostariam de voltar para trás no tempo, dizem que não, que preferem continuar como estão, tenham a idade que tiverem. A vida parece fazer sentido na etapa que está a ser vivida e não noutra, independentemente do grau de felicidade que acreditamos ter. Dar, ao contrário do que possa parecer, não nos esvazia, preenche-nos, dá-nos a plenitude, a sensação de que usámos todo o nosso potencial e que não faz sentido voltar atrás, pelo contrário, há que terminar a história, há que dar-lhe um final, um significado, deixar uma herança: a nossa cultura e as nossas ideias, os nossos medos, as nossas dores. Algo que se juntou naquilo que somos e que se derramou pelo mundo e por outras pessoas durante a nossa vida e que continuará a viver pela eternidade. Não há nada que façamos que não tenha tenha consequências eternas."

Jalan, Jalan, uma leitura do mundo / Afonso Cruz. Lisboa: Companhia das Letras, 2017

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (VIII)



"O erro está muito próximo da inutilidade e ambos têm um papel fulcral na criatividade. Não precisarei de salientar este ponto que já foi muito debatido, mas sublinho a convicção de que as coisas mais importantes da vida não são utilitárias: desprezamos quem um gesto por lucro ou benefício e não pelo gesto em si, ou por amizade ou amor. 

O que sentiríamos se um amigo confessasse que só conversa connosco porque lhe pagam para isso?
Ou que uma mãe confessasse ao filho que apenas o educa e o trata bem de modo a ter alguém para a amparar na velhice? É na inutilidade que está o altruísmo e aquilo que o ser humano considera naturalmente mais nobre. (...)

A ficção e a cultura constroem tudo o que somos. Não nascemos com pelos e dentes afiados e garras. Criamos roupas e ferramentas, que são sempre produto da ficção, da cultura. 
A verdade salva-nos, por motivos evidentes, mas a ficção também. Podemos avisar que um tigre se aproxima, é importante dizer a verdade, constatar, mas para nos defendermos dele, precisamos de, antes de o animal ter aparecido, ter imaginado essa possibilidade para que nos consigamos salvar.

A ficção salva-nos. Literalmente. Por imaginarmos, conseguimos saber o que fazer, conseguimos ter as ferramentas ou opções necessárias ao ato. Os animais nascem com a verdade, com uma sólida realidade que lhes deixa um reduzido espectro de aprendizagem; nós nascemos com menos verdade, com menos realidade, mas com possibilidades, com as armas imponderáveis da ficção: criamos."

                      Vamos comprar um poeta / Afonso Cruz. Alfragide: Caminho, 2016.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Boletim Bibliográfico 6 - Afonso Cruz

 Afonso Cruz by BibliotecasAears on Scribd

Escritor do mês - outubro (VII)

     
   "No dia da escolha, fomos a uma loja, eu e o pai. O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que na escola me chamam ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos,mas que felizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave à competitividade mais elementar.
   Na loja havia poetas de muitos tipos, baixos, altos, louros, com óculos (são mais caros), sendo a maior parte, sessenta e dois por cento, carecas, e sessenta e oito por cento da barba.
Gostei de um que era ligeiramente marreco,uma escoliose com uma curvatura oblonga.
  Trajava um colete de fazenda, setenta e cinco por cento lã, sendo os restantes vinte e cinco nylon, calças de bombazina castanhas, pantone setecentos e trinta e dois, sapatos de couro já muito usados. Fungava e tinha um livro debaixo do braço.     Nenhuma das suas roupas tinha patrocínio de marcas.
  O pai cumprimentou o vendedor com a cortesia destas ocasiões, há sempre uma grande solenidade, sacralidade, no ato de iniciar um possível negócio.
   Que os números lhe sejam favoráveis, disse ele.
   Crescimento e prosperidade, respondeu o vendedor."
   
Vamos comprar um poeta / Afonso Cruz. Alfragide: Caminho, 2016.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (VI)

"Porque brincar é descobrir a parte de dentro das coisas,
é normal que as crianças queiram abrir tudo,
a Natureza, a luz, a água,
rasgar a realidade,
partir a casca de ovo da realidade
para descobrir o que a sustenta,
os seus ossos, o seu coração, a sua carne,
porque desde crianças que não acreditamos em cenários,
em superfícies e aparências, desde crianças
que desejamos iluminar tudo. Queremos
abrir frutos para descobrir sementes.
E semeá-las, o que é muito mais difícil do que simplesmente partir a casca. Queremos que a realidade
cresça como uma árvore.
No fundo, descobrir uma semente
é o desejo de ter uma sombra."

"Abrir frutos", in paz traz paz / Afonso Cruz. Lisboa: Companhia das Letras, 2019


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (V)

 


"Na rua, Badini apanhava bocados de pão como se fosse um pombo. Ajuntava-os com as mãos e, chegando ao pátio, costumava reunir toda a família. Depois, atirava os pedaços de pão ao ar e via o futuro por entre os bocados que caíam, no espaço entre as migalhas do pão. O tempo vê-se em coisas essenciais e só a respiração é mais urgente do que o pão. Um homem deve ser dividido em dois, metade pão, metade ar, dizia Badini. O tempo vê-se em coisas essenciais e só a respiração é mais urgente do que o pão. Um homem deve ser dividido em dois, metade pão, metade ar, dizia Badini. É disso que ele vive. Quando o ar e pão se juntam, surge o terceiro alimento, que é a sabedoria. Está precisamente entre os espaços que o pão cria no ar. Os prognósticos de Badini eram sempre muito crípticos, mas disso dependia a sua beleza e a sua precisão. Quanto mais ambíguos mais exactos se tornavam. Animah pedia-lhe constantemente que lesse - apesar de achar que era pecado - o que diziam os bocados de pão apanhados na rua: se diziam com quem se casaria, se seria Dilawar, se seria outro, se seria bonito, se teria os olhos azuis como os artistas americanos. Badini fazia-lhe a vontade e depois vaticinava acontecimentos impossíveis que ninguém compreendia. Aminah entristecia-se depois de cada uma dessas consultas, mas não se cansava de pedir. Tinha uma esperança secreta de que um dia compreenderia aquelas estranhas sentenças que o primo dizia com as mãos. Tinha esperança de que a sua felicidade estivesse no espaço entre bocados de pão. 
Quando Isa chegou a casa com o autocarro de lata, símbolo de um nascimento, Aminah fingiu  não reparar, vinha do quintal com Badini, depois de este ter atirado ao ar uns pedaços de pão que não sabiam dizer frases concretas e objetivas. É a linguagem dos anjos, dizia-lhe Badini. No céu fala-se com muita subjectividade, pois a verdade morre quando se torna objectiva. Aminah encolheu os ombros e estalou a língua.
Fazal Elahi estava muito satisfeito e sentou-se com Badini para jogarem xadrez. Isa brincava com o autocarro de lata que era o seu nascimento."

Para onde vão os guarda-chuvas / Afonso Cruz. Lisboa: Alfaguara, 2013.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (IV)


"Além das horas matutinas ao piano, a minha mãe passava algum tempo, habitualmente depois do almoço, a cantar as canções da rádio, cujas letras diziam que ra bom deitar cedo e cedo erguer, que os pobres são mais felizes, que a humildade enche a barriga, esse tipo de arrazoado, e eu ficava a vê-la e a  ouvi-la, fascinado com os trinados a meia-voz e o tremor delicado dos lábios. A minha mãe falava pouco, por isso tudo o que dizia era precioso, e, quase sempre sob a aparência humilde da simplicidade, o conteúdo das frases era inusitado e ao mesmo tempo profundo. 

Posso, admito, pela raridade das conversas com ela, ter exagerado e engrandecido o que me disse e que recordo com o filtro do tempo, da maturidade, sobredimensionando agora o que de facto ouvi. Como dizia, a minha mãer passava horas a cantar as canções da rádio e um dia confessou-me que cantava, não necessariamente porque gostava muito das canções, mas porque gostava de cantar com milhares de pessoas. 

Na altura não percebi, mas hoje consigo imaginar a quantidade de mulheres, sim, especialmente mulheres, que, a passar a ferro, a lavar, a embalar os filhos, a cozer o feijão, a tricotar, a quantidade de mulheres que interrompiam o choro, que olhavam pela janela, que fechavam os olhos, a quantidade de mulheres que, ao mesmo tempo que a minha mãe, cantavam a mesma  canção que ouviam na rádio. Ela devia sentir uma espécie de comunhão, uma união estranha e subtil, uma fraternidade invisível que interrompia as suas dores para cantar uma canção em uníssono. Ela, quando sintonizava o rádio, era para se sintonizar com as outras mulheres."

Não tinha o desejo de mudar o mundo, queria apenas fazer parte dele.

Princípio de Karenina / Afonso Cruz. Lisboa: Companhia das Letras, 2018


terça-feira, 13 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (III)

"Estamos demasiado familiarizados com esta ideia de dor e felicidade que, perversamente, se misturam e se engedram, mas também é verdade que tendemos a separar as duas como se tivessem existências autónomas. Este matrimónio aflitivo entre duas experiências superficialmente antagónicas, mas que formam um tecido comum, é uma espécie de ironia subjacente ao Universo. Junqueiro chamou à dor 0 “substrato último da Natureza, o fundo irredutível do Universo”, acrescentando-lhe, claro, a possibilidade de ser transformada em algo mais luminoso: “Não há beleza esplendente que não fosse dor caliginosa. 
A flor é a dor da raiz, a luz, a dor das estrelas.” Acrescentou: “Homens de gosto coleccionam quadros ou estátuas, O meu amigo colecciona dor. Não em galerias ou museus, como quem se dedica ao estudo biológico das várias formas de sofrer. Quando uma chaga aterradora o surpreende, não a envazilha num frasco, guarda-a no coração. Conta-lhe os ais, não os micróbios. Em vez de a analisar, decompondo-a, analisa-a beijando-a. No seu laboratório químico existe apenas um reagente que dissolve tudo: lágrimas.” Cabe-nos, ao aceitar as regras deste jogo, uma espécie de exercício de mineração, trabalhar afanosamente e sem tréguas na extracção de virtudes de dentro de matéria vil. (…) 
Até onde podemos esticar o amor? Até à pele do outro ou mais longe? Será possível que atravesse o tempo, o espaço, que voe por cima do deserto jordano e atravesse o Índico e suba o Hindukush e penetre na boca do Vesúvio, será possível que se estenda para lá da vida, que voe pelo cosmos como aqueles cometas solitários que deambulam milhões de anos numa solidão infinita e silenciosa? Talvez seja isso tudo, e mais ainda, talvez seja possível enfiá-lo numa garrafa e atirá-lo ao mar para que navegue até ao destino, que é a espinha do amor, que é o que o faz mover. O amor tem dentro dele uma direcção, um sentido, uma enteléquia, um primo móbil. Seria expectável que, se Deus existisse, tivesse no início dos inícios criado o mar, tivesse bebido uma cerveja, tivesse escrito o Universo num bocadinho de papel, tivesse enfiado a mensagem na garrafa, tivesse atirado a garrafa ao mar, tivesse esperado que o amor concretizasse o Universo, a sua mensagem, enquanto fumava um cigarro no cais de Honfleur."

Nem todas as baleias voam / Afonso Cruz. – 1ª ed. – Lisboa : Companhia das Letras, 2016. – 266, [14] p. ; 23 cm. – ISBN 978-989-665-127-5

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (II)

Vivaldo! Vivaldo! Vivaldo! - gritava o chefe da repartição, mas ele ouvia aquela voz lá muito no fundo, a desaparecer numa esquina. Foi assim que a minha avó me começou a contar a história de Vivaldo Bonfim, o meu pai. 

Ele trabalhava no 7.º Bairro Fiscal e achava-se num mundo entediante, chato, plano, aborrecido, cheio de papéis, papeladas e outras burocracias que se fazem com a madeira das árvores. Era um mundo desprovido de literatura. A minha mãe estava grávida de mim, eu nadava no seu útero, dava voltas como a roupa na máquina de lavar, nessa altura fatídica. O meu pai só pensava em livros (livros e mais livros!), mas a vida não era da mesma opinião, a vida dele pensava noutras coisas, andava distraída, e ele teve de se empregar.

A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo de que gostamos. Contudo, o meu pai levava livros (livros e mais livros!) para a repartição de finanças e lia às escondidas sempre que podia. Não é uma atitude que se aconselhe, mas era mais forte do que ele. O meu pai amava a literatura acima de tudo. Punha sempre um livro debaixo de modelos B, impressos de alteração de atividade e outros papéis de nomes ilustres, e lia discretamente, fingindo trabalhar. Não era uma atitude muito bonita, mas o meu pai só pensava nos livros. Foi isto que a minha avó me contou com os seus pensamentos cheios de rugas na testa. Nunca conheci o meu pai. Quando nasci já ele não andava aqui neste mundo. (...) 

A um sinal da minha avó, subi as finas escadas que davam para o sótão e abri a porta. Tinha as mãos a tremer. Sabia que ali dentro, naquele sótão, estava tudo cheio de letras a fingirem-se de mortas, mas - sei muito bem - basta que pasemos os olhos por elas para saltarem cheias de vida. Hesitante, entrei e abri a janela. O sótão cheirava a sótão fechado e estava tudo cheio de pó. A luz, quando entrou, encheu toda a biblioteca de pontinhos brancos. Era um pó que já estava a entrar na adolescência, um pó com doze anos, a mesma idade que eu. Todos os livros estavam impecavelmente arrumados nas suas prateleiras, parados a seguirem-se com o seu olhar de lombada. Retribui o olhar - semicerrando os olhos - sem me deixar emboscar por nenhum daqueles títulos. Junto à janela estava o cadeirão onde o meu pai se sentava e em cima do estofo estava um livro. Senti a garganta seca  e o coração a disparar. À minha frente estava a 'A ilha do Dr. Moreau'. Peguei nele como se fosse um objeto sagrado, sentei-me no cadeirão e preparei-me para o folhear. Conseguiria fazer como o meu pai e entrar no mundo dos livros?

Uma biblioteca é um labirinto. Não é a primeira vez que me perco numa. Eu e o meu pai temos isso em comum. Penso que foi isso que lhe aconteceu. Ficou perdido no meio das letras, dos títulos, perdido no meio de todas as histórias que lhe habitavam a cabeça. Porque nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-ênes e códigos genéticos, nem de carnes e músculos e pele e cérebros.É de histórias. O meu pai, tenho a certeza, perdeu-se nesse mundo e agora ninguém lhe consegue interromper a leitura.

Li, numa das minhas tardes passadas no sótão, um conto de um escritor argentino chamado Borges, sobre um labirinto que é um deserto. Há inúmeros lugares onde um ser humano se pode perder, mas não há nenhum tão complexo como uma biblioteca. Mesmo um livro solitário é um local capaz de nos fazer errar, capaz de nos fazer perder. Era nisto que eu pensava enquanto me sentava no sótão entre tantos livros."

Os livros que devoraram o meu pai / Afonso Cruz. Lisboa: Caminho, 2010

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro

 

“Nunca pensei em ser escritor. Mas creio que o grande combustível, a grande matéria-prima para depois escrever, foi gostar muito de ler. Leio diariamente desde que me lembro de ser gente. E hoje sinto-me quase incapaz de escrever se não ler.”

Afonso Cruz é o autor escolhido nas Bibliotecas para este mês de outubro. Afonso Cruz é um escritor multifacetado pelos livros que nos tem dado e disso falaremos no boletim bibliográfico um pouco mais em detalhe. É igualmente ilustrador, cineasta e músico de uma banda designada The Soaked Lamb. Fez formação diversa e alargada na área das artes plásticas em diferentes institutos e escolas superiores do país e na Europa. 

Já recebeu vários prémios, como sejam, o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2010, o Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2009, o Prémio da União Europeia para a Literatura 2012, Prémio Autores 2011 SPA /RTP. Afonso Cruz teve ainda outros prémios importantes, como uma menção especial no Prémio Nacional de Ilustração de 2010 e na Lista de Honra do IBBY - Internacional Board on Books for Young People. Foi ainda finalista dos prémios Fernando Namora e Grande Prémio de Romance e Novela APE e conquistou o Prémio Autores para Melhor Ficção Narrativa, atribuído pela SPA em 2014.

Afonso Cruz nasceu para a escrita a partir de uma dualidade muito presente na sua vida, a leitura e as viagens. Foi com elas que se iniciou na atividade de imaginar histórias. A sua curiosidade pela natureza e por diferentes culturas também o ajudou a cultivar a sua expressão pelas palavras. Afonso Cruz é um bom exemplo para essa ideia de aprendizagem que todos devíamos cultivar, isto é, desenvolver a curiosidade e o gosto por algo e depois ir tentar aprender e fazer isso com dedicação.

Entre os seus diferentes livros são de destacar pelo tipo de proposta narrativa, ou pela inovação com que as histórias nos surgem, Enciclopédia da estória Universal (2009), Jesus Cristo bebia cerveja (2014), Flores (2015), Nem todas as baleias voam (2016) e Jalam Jalam de 2017.

terça-feira, 10 de março de 2020

Eça de Queiroz - a vida e o escritor


Uma nação vive, próspera, é respeitada, não pelo seu corpo diplomático, não pelo seu aparato de secretarias, não pelas recepções oficiais,(...); isto nada vale, nada constrói, nada sustenta;(...). Uma nação vale pelos seus sábios, pelas suas escolas, pelos seus génios, pela sua literatura, pelos seus exploradores científicos, pelos seus artistas». (1)

José Maria de Eça de Queiroz nasceu na Póvoa do Varzim em 1845. Estudou entre o colégio da Lapa, na cidade do Porto, e a Universidade de Coimbra, onde entrou no primeiro ano, em 1861. Aqui, ligou-se a uma geração académica, admiradora das ideias de Proudhon e de Comte. Travou conhecimento com Antero de Quental e iniciou a sua carreira literária, com a publicação de folhetins que mais tarde seriam agrupados nas Prosas Bárbaras (1905).

Em 1866, formou-se em Direito e passou a viver em Lisboa, onde exerceu a profissão de advogado. Cimentou a sua ligação a Antero de Quental e ao grupo do Cenáculo (1868), após ter dirigido o Distrito de Évora (1867). Em 1869, viajou até ao Egito, para fazer a reportagem sobre a inauguração do Canal do Suez, de que resultará O Egipto, publicado apenas em 1926.

Em 1871, participou nas Conferências do Casino Lisbonense. Entre 1869 e 1870, publicou diferentes obras, tais como Os Versos de Fradique MendesO Mistério da Estrada de Sintra, em parceria com Ramalho Ortigão e iniciou a publicação das Farpas. Em 1871, foi nomeado 1.º Cônsul nas Antilhas espanholas, transitando depois para Cuba, onde permaneceu dois anos. Entre 1883 e 1887, refez algumas das suas obras e publicou o Conde D’Abranhos e Alves & Companhia. Em 1874, passou a desempenhar a sua atividade em Inglaterra, foi em Newcastle que terminou O Crime do Padre Amaro (1875), ali ficando até 1878.

 Após esta data, foi para Paris, onde se dedicou à criação literária e onde faleceu em 1900. Em 1888, publicou a sua grande obra Os Maias e foi nomeado Cônsul em Paris. Continuou a escrever diferentes textos e obras, como A Ilustre Casa de Ramires ou a publicação na Revista Moderna, em Paris. 

Eça é um dos maiores escritores de língua portuguesa, (talvez o maior) sendo em muitos aspetos uma figura que cria um mundo novo que alcança formas novas de exprimir um modernismo na escrita. A sua obra evoluiu de uma formulação inicial mais fantástica e influenciada por nomes como Baudelaire ou Heine, presente nos artigos e crónicas, para numa fase posterior se dedicar à crítica das instituições mais tradicionais, preocupando-se com a reforma social, dando-nos belos quadros de “crónicas de costumes.” Na última fase, encontramos uma escrita com mais esperança, com o culto da Natureza e de um certo regresso à simplicidade do homem, como se percebe em A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras ou a Correspondência de Fradique Mendes.

Eça de Queirós tendo vivido na parte final do século XIX soube pela sua capacidade de análise do quotidiano e da organização social, traçar com humor algumas das características deste País. O diagnóstico de uma classe política naufragada onde os interesses particulares parecem não ser capazes de organizar institucionalmente o País, onde as ideias tantas vezes decididas em circunstâncias de acaso parecem ameaça-lo, nos seus oito séculos de história. Vindo do século XIX é um modernista na escrita e no pensamento que nos deixou. A sua obra tem a marca dos grandes escritores. Pretendeu agitar nos cidadãos de um País a ambição não só de existir, mas de acompanhar a civilização nos seus aspetos mais modernos e transformadores da vida. 

A utilização do humor, como forma superior de caricatura do mais banal e trivial no quotidiano deu-lhe uma dimensão quase intemporal pela afirmação da cultura e da arte como formas de exprimir uma sociedade. Sociedade cuja espuma dos dias é diferente pelos mais evidentes motivos, mas cujas ondas ainda se organizam em princípios que Eça explicitou há mais de um século. Há no país uma permanência que ele soube captar.

(1) Eça de Queiroz, Distrito de Évora
Imagem, in contosdocovil.wordpress.com

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

leituras de dezembro


Título: O chapéu das fitas a voar
Autor: Augustina Bessa-Luís
Edição: 1ª
Páginas:2008
Editor: Guimarães Editores
ISBN:  978-972-665-523-2
CDU: 821.134.3

Sinopse (Excertos):
"Não são os crentes que se salvam; são os que esperam em plano de igualdade com o que é eterno - a vida humana e a realidade dos seus direitos. Devo acrescentar aqui alguma coisa que sempre me pesou: acima dos amigos eu tive o pensamento; além da gratidão, eu pus o amor forte e generoso pela vida. (...)

Somos sempre muito faladores com o insignificante e muito calados com o que nos assusta. Assusta-nos o íntimo das nossas vidas, por passarmos todas as portas sem pensar que elas se fecham para sempre atrás de nós. Não podemos voltar para compor o inacabado ou as palavras soltas ou a que faltou a experiência.

A criança de seis anos que eu era, que andava sozinha pela avenida onde cresciam as grandes tílias e só os pássaros se ouviam como guardas dos meus passos, teve o primeiro pressentimento do extarordinário. Disse para mim: "Estou num lugar, numa hora, numa vida que não me são desconhecidos." É que esse entendimento de que a nossa vida é repetição e pode ser corrigida a ponto de produzir uma forma de profecia, aquilo que nos abençoa e protege e alegra, fazendo com que o sofrimento tenha sentido no mundo". (1)

(Desta vez optámos apenas por retirar uns excertos do livro escolhido, pois a sabedoria de Agustina nas suas palavras é a melhor forma de seduzir outros leitores a descobrir uma obra rara, a que voltaremos mais vezes, para essa multiplicação do eterno).

   (1) Agustina Bessa-Luís, "Os amigos", in O chapéu das fitas a voar, págs. 214-215

(Pela sua dimensão mais reduzida e pelo seu imaginário, em dezembro iremos nos livros do mês e no autor do mês deixar alguns excertos a ler sobre a beleza da palavra, ou a sua construção em nós. )

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

António... na escrita que procura as linhas da vida...

"O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me

- Abrace-me porque é o último abraço que me dá
durante o abraço

- Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento
e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O'Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa determinação tranquila:
- Estou aqui para lutar
e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a esperança.
A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido

- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento
porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio. Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. 

Porque carga de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.
O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam mal:
- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.

Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.

Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que seja o último abraço que damos."


António Lobo Antunes, Visão, Quinta, 12 de Dezembro de 2013


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Livros do Mês (10.19) - II


Eram as flores no friso da janela que davam a nota mais colorida à sala de estar, virada para a rua. A tia Gertrud da América mandara, certo dia, um cartuchinho de sementes que a avó espalhara num vaso com terra. Em breve nascera uma roseira. Não uma roseira vulgar, mas sim rara, que dava apenas uma rosa em cada Verão, rosa dum vermelho carregado e, no dizer da avó, mais bela e mais duradoura do que todas as rosas da aldeia. Assim como o Sol é o astro mais altivo e mais luminoso no friso da janela. 

Ao contemplá-la, absorta, pensava na terra da América e na cidade de Nova Iorque, que estava para a nossa aldeia como o elefante para a mosca. E assaltava-me então a curiosidade de terras distantes, estranhas, de tal forma que me esquecia do avô Markus, a quem prometera nunca deixar. Sonhava com ruas largas, sem fim, onde floresciam sebes de rosas diante de casas brancas cujas janelas transbordavam de rosas, molhos e molhos de rosas, e uma inquietação tomava posse de mim. A Ânsia de permanecer junto do friso da janela e ao mesmo tempo de poder estar lá, onde as rosas eram assim, e até em toda a parte do mundo.

Ao lado da janela, precisamente onde floria a roseira americana, a avó Ester dormia todas as tardes a sua sesta de quinze minutos. A cabeça encostada à almofada, os pés no escabelo, certinhos um ao lado do outro, a meia com as cinco agulhas no regaço, dormia sem se mexer. O rosto miúdo, sulcado de rugas, donde o nariz parecia quere saltar, refletia o seu cansaço. Quando a via assim a dormir, lembrava-me dum pássaro morto que certa vez encontrei, com o avô, na borda de um poço coberto de neve.

Entretanto eu tinha licença de folhear as velhas revistas, de dobrar tiras de papel para acender o candeeiro a gás ou o cachimbo do avô, pois a avó não consentia que se gastassem fósforos estando o fogão aceso para fornecer lume. De tempos em tempos interrompia essas ocupações para contemplar a avó a dormir. Em vão procurava no rosto esgotado os vestígios da beleza e da graciosidade que tivera, no dizer do avô, quando fora nova e ele a escolhera para mulher.

Uma das duas portas da sala de estar dava para o quarto de dormir, onde pairava sempre um cheiro a lilases saído da gaveta inferior da cómoda. Ali a avó guardava as suas quinquilharias pessoais. Não deixava de ser estranho ela, a mulher prática, não conseguir desfazer-se de todas essas rendas e rendinhas, golas e golinhas antiquadas, dos leques, das flores de papel e de outras coisas no género, eme vez disso conservá-las em caixas de sabonetes e latas de rebuçados. 
A avó dormia numa das suas camas, enquanto eu ficava com o avô na outra. Era ela que me lavava, no fim do dia, dos pés à cabeça, numa bacia de zinco, mas era o avô quem me levava às cavalitas para a cama que, nos primeiros dias depois de a avó lhe ter mudado os lençóis, cheirava a alfazema. Todas as noites o avô se sentava ao meu lado. Contava histórias e cantava canções. A voz volumosa, grave, animava a escuridão com as figuras dos contos de fadas e da Bíblia e embalava-me até eu adormecer.

Certa noite, depois de ele me ter deixado, aproximou-se da janela aberta um ruidoso bater de asas. Suspendi a respiração e julguei morrer de medo. Duas asas batiam sobre a minha cabeça e os meus ombros. Quis gritar, mas a garganta aperte-se-me. Fechei os olhos, abri-os, cravei-os na escuridão… Já não havia mais nada. Pela janela aberta, entrava, leve e fresco, o ar da noite. Sentei-me, apalpei tudo em redor, ergui os braços. Nada. Só a escuridão e o silêncio. Quem estivera comigo? O anjo de Jacob? O pássaro gigante? O rei dos amieiros? Mas os reis tinham asas?... Quando finalmente o avô tornou a entrar para se deitar ao meu lado, aconcheguei-me, aliviada, nos seus braços.

 O mundo em que vivi / Ilse Losa. - 1ª ed. - Porto : Manaus, 1949.