"Para salvares uma ideia, não a leves contigo, entrega-a a outras pessoas. A morte deve ser vista como uma entrega de si mesmo ao mundo. Não adianta levar connosco a forma do nosso nariz nem uma bela teoria sobre o tempo, mas sim deixar que a forma do nosso nariz mude o mundo à nossa volta, como terá feito o de Cleópatra, ou que a nossa bela teoria encontre outras cabeças para crescer, melhorar e evoluir. Desejaríamos isso a um filho, creio que o devemos fazer em relação às ideias.
Sublinho o chavão: a vida é uma dádiva. Recebemos algo, transformamos e entregamos, reforçando a ideia popular de que não levaremos nada desta vida. Excepto o que demos.
A nossa barca é onde colocamos a nossa identificação, em que que arca queremos parir, em que direcção. Um homem que pensa em dobradiças viverá em parafusos, num portão ou na porta de um armário de cozinha, um homem que pensa em libertar o Homem viverá em todos os heróis. Cada um escolhe a sua Terra Santa. O seu lugar para continuar vivo, evoluindo, crescendo, transformando-se. Cada um escolhe o seu Céu, o seu Paraíso ou o seu Inferno. O lugar pelo qual morreria: uma ideia, um filho, uma cadeira, uma pedra, um sonho, um iate, um livro. Depois de escolher a terra para ser enterrado e ressuscitado, nela continuaá a ser outra coisa e, ao mesmo tempo, o que sempre foi.
É curioso que a maior parte das pessoas identifica a infância como o tempo mais feliz das suas vidas, mas quando lhes perguntamos se gostariam de voltar para trás no tempo, dizem que não, que preferem continuar como estão, tenham a idade que tiverem. A vida parece fazer sentido na etapa que está a ser vivida e não noutra, independentemente do grau de felicidade que acreditamos ter. Dar, ao contrário do que possa parecer, não nos esvazia, preenche-nos, dá-nos a plenitude, a sensação de que usámos todo o nosso potencial e que não faz sentido voltar atrás, pelo contrário, há que terminar a história, há que dar-lhe um final, um significado, deixar uma herança: a nossa cultura e as nossas ideias, os nossos medos, as nossas dores. Algo que se juntou naquilo que somos e que se derramou pelo mundo e por outras pessoas durante a nossa vida e que continuará a viver pela eternidade. Não há nada que façamos que não tenha tenha consequências eternas."
Jalan, Jalan, uma leitura do mundo / Afonso Cruz. Lisboa: Companhia das Letras, 2017
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