quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Livros do mês - 2.º / 3.º Ciclos (IV) - outubro


"O Cabedelo para mim era o deserto, cheio de prestígio e de aventuras.... Era no Cabedelo  que tomávamos os melhores banhos, deitados na areia, deixando vir sobre nós a vaga num rodilhão de algas e espuma. Andar um momento envolvido na crista da onda, ser atirado numa sufocação sobre a areia, correr de novo para o mar, direito à vaga que se encapela lá no fundo, formando concha, outra vez aturdido e impregnado de uma vida nova; e depois procurar, a escorrer, um côncavo quentinho de areia que nos sirva de abrigo contra o vento e secar-se a gente naquele lençol doirado - é uma das coisas boas da terra. E outro prazer simples e extraordinário é ir descalço pelo grande areal fora com os pés na água. A onda vem, espraia-se, molha-nos e salpica-nos de espuma. Calca-se esse mosto branco e salgado que gela e vivifica, e caminha-se sempre ao lado dos sucessivos rolos que se despedaçam na areia. A onda vem, cresce e, antes de se despedaçar em espuma, o sol veste-a de uma armadura de aço a reluzir. Há-as de um esverdeado de alga morta, há-as que se derretem e fundem em torvelinhos de branco e há-as que recuam e se enovelam noutras ondas prestes a desabar. Mas há umas, esplêndidas, que vi em Mira, ao pôr do sol, quando o vasto areal fica todo ensanguentado. A onda forma-se e corre por aquela magnífica estrada que vem do Sol até à praia, ganha primeiro reflexos doirados na crista e depois, quando se estira pelo areal molhado, fica cor do vinho nos lagares.
Outras vezes percorríamos o Cabedelo a pé como exploradores. Há lá canaviais, poças de água azul e polida, rochas luzidias por onde escorregávamos, peixes nascidos que procuram o refúgio das pedras e a água aquecida para se acabarem de criar. caranguejos nas fisgas e, na vazante da maré, grandes lagos que navegávamos ao acaso, deixando o barco ir à toa e encalhar no areal...
O Cabedelo produz, além das canas, uma espécie de cardo, plantas rasteiras e humildes de folha dura, que dão uma flor pequenina e vermelha, outras que parecem os chapotos que nescem nos velhos muros, e ainda outras mais pobres com a folha em escama pela haste acima. Estes  vastos areais, revestidos às vezes de cabelo de oiro que seguram as dunas, estão todo o ano a concentra-se para em Agosto sair daquela secura e do amargo do sal, um lírio branco que os  perfuma, dura algumas horas e logo desaparece.

Os Pescadores / Raul Brandão- Porto: Porto Editora, 2010
Imagem: Copyright - Benji Davies

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