quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Livros do mês - 2.º / 3.º Ciclos (III) - outubro

 

Vai cair a tarde. O azul desmaia sobre o areal doirado. Mais pó esbranquiçado lá no fundo, par o norte - névoa ou luz que nasce, não sei bem; para o sul, o morro transparente que entra pelo mar... Três grandes barcos decorativos estão num grupo, de proa à água, que a toda a hora esmorece. Somem-se as casas denegridas, a agitação e os homens; só o barco se me afigura cada vez maior, sobre a vaga imensa do areal, sob o resplendor imaculado do Sol, enchendo o céu e a terra com as suas grandes linhas decorativas. À primeira vista parece uma coisa teatral, prestes a desconjuntar-se, só cenário e mais nada, com quatro patas desajeitadas de bicho, sem o alicerce da quilha a sustentá-lo, impróprio para o mar e para a terra - obra de lavradores que resolveram um dia ir à sardinha. Os quatro remos pesadíssimos, com uma grande parte mais grossa e reforçada, que se chama cágado, são coevos do alfange, e estes bicos aguçados, que tão bem ficam no areal e no céu, não têm solidez nenhuma. Na realidade, um barco destes, que parece inútil, é um produto de engenho secular. Como não há porto nem abrigo e a embarcação tem de passar logo do areal para a onda que escachoa, atravessando a arrebentação para sair ao largo ou para regressar à terra, era necessário oferecer à onda a menor resistência e saltar-lhe no dorso: - por isso ergueu a proa. E como a dança das ondas se sucede durante alguns minutos, era forçoso também que, mal assentasse na água, lhe andasse ao de cima: - e a popa fugiu-lhe para o céu. O barco tem exactamente o feitio côncavo do espaço que vai de vaga em vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas extremidades.

Os Pescadores / Raul Brandão- Porto: Porto Editora, 2010
Imagem: Copyright - Benji Davies

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