"Estamos demasiado familiarizados com esta ideia de dor e felicidade que, perversamente, se misturam e se engedram, mas também é verdade que tendemos a separar as duas como se tivessem existências autónomas. Este matrimónio aflitivo entre duas experiências superficialmente antagónicas, mas que formam um tecido comum, é uma espécie de ironia subjacente ao Universo. Junqueiro chamou à dor 0 “substrato último da Natureza, o fundo irredutível do Universo”, acrescentando-lhe, claro, a possibilidade de ser transformada em algo mais luminoso: “Não há beleza esplendente que não fosse dor caliginosa.
A flor é a dor da raiz, a luz, a dor das estrelas.” Acrescentou: “Homens de gosto coleccionam quadros ou estátuas, O meu amigo colecciona dor. Não em galerias ou museus, como quem se dedica ao estudo biológico das várias formas de sofrer. Quando uma chaga aterradora o surpreende, não a envazilha num frasco, guarda-a no coração. Conta-lhe os ais, não os micróbios. Em vez de a analisar, decompondo-a, analisa-a beijando-a. No seu laboratório químico existe apenas um reagente que dissolve tudo: lágrimas.” Cabe-nos, ao aceitar as regras deste jogo, uma espécie de exercício de mineração, trabalhar afanosamente e sem tréguas na extracção de virtudes de dentro de matéria vil. (…)
Até onde podemos esticar o amor? Até à pele do outro ou mais longe? Será possível que atravesse o tempo, o espaço, que voe por cima do deserto jordano e atravesse o Índico e suba o Hindukush e penetre na boca do Vesúvio, será possível que se estenda para lá da vida, que voe pelo cosmos como aqueles cometas solitários que deambulam milhões de anos numa solidão infinita e silenciosa? Talvez seja isso tudo, e mais ainda, talvez seja possível enfiá-lo numa garrafa e atirá-lo ao mar para que navegue até ao destino, que é a espinha do amor, que é o que o faz mover. O amor tem dentro dele uma direcção, um sentido, uma enteléquia, um primo móbil. Seria expectável que, se Deus existisse, tivesse no início dos inícios criado o mar, tivesse bebido uma cerveja, tivesse escrito o Universo num bocadinho de papel, tivesse enfiado a mensagem na garrafa, tivesse atirado a garrafa ao mar, tivesse esperado que o amor concretizasse o Universo, a sua mensagem, enquanto fumava um cigarro no cais de Honfleur."
Nem todas as baleias voam / Afonso Cruz. – 1ª ed. – Lisboa : Companhia das Letras, 2016. – 266, [14] p. ; 23 cm. – ISBN 978-989-665-127-5
Sem comentários:
Enviar um comentário