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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Minutos de leitura

 

"No cinzento do céu,
que olho da minha janela,
encontro a melancolia
de quem reza na capela.
 Na folha castanha
de um bosque de outono,
encontro aquela queda
que me faz sair do trono.
Na onda azul do mar
que me faz sempre sorrir,
encontro o abrandar
para poder refletir.

Quando vejo o verde campo,
na estrada da minha aldeia,
encontro verdadeiro descanso
para uma alma que anseia.

No marelo do sol,
que aquece e ilumina,
esncontro e sigo o farol,
onde a alegria culmina.

No vermelho desta flor
que observo no caminho,
encontro um grande amor
que hoje lembro com carinho.
No pássaro multicolor
que canta bem lá no alto,
encontro paz e calor
que expulsa o sobressalto.
Nesta paleta de cores
que pintam a minha vida,
encontro cada sentimento
na natureza vivida."
José David Costa, in A dança das palavras. Alfragide: Caminho, 2016.  
Imagem: Copyright - 薫風。

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Minutos de leitura


Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte

E em que o sono parecia disposto a não vir
Fui estender-me na praia sozinho ao relento
E ali longe do tempo acabei por dormir

Acordei com o toque suave de um beijo
E uma cara sardenta encheu-me o olhar
Ainda meio a sonhar perguntei-lhe quem era
Ela riu-se e disse baixinho, estrela do mar

Sou a estrela do mar
Só ele obedeço, só ele me conhece
Só ele sabe quem sou no principio e no fim
Só a ele sou fiel e é ele quem me protege
Quando alguém quer à força
Ser dono de mim

Não se era maior o desejo ou o espanto
Só sei que por instantes deixei de pensar
Uma chama invisível, incendiou-me o peito
Qualquer coisa impossível, fez-me acreditar

Em silêncio trocámos segredos e abraços
Inscrevemos no espaço um novo alfabeto
Já passaram mil anos sobre o nosso encontro
Mas mil anos são poucos ou nada para a estrela do mar

Estrela do mar
Só ele obedeço, só ele me conhece
Só ele sabe quem sou no principio e no fim
Só a ele sou fiel e é ele quem me protege
Quando alguém quer à força
Ser dono de mim

Jorge Palma , "Estrela do mar"

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

"Ah, se eu fosse a menina do mar,
A menina que a Sophia
Pôs-se um dia a imaginar!...

Viver numa poça de água,
Fazer dela o meu abrigo
- Cabeça tonta, esse mar,
Que se esquece de levar
As poças de água consigo!

Pediria às algas verdes
Que fizessem de alface
E à estrela.do-ar, com os seus braços,
Que me desse mil abraços
Sempre que eu precisasse.

Como cabide da roupa
Usaria o camarão
E pediria à anémona
Que me enfeitasse a lapela
Ou fizesse de botão.

Ondeava o meu cabelo
De manhã, ao levantar;
Fazia do mexilhão a sacola
E iria para a escola
Montada na pulga-do-mar.

Amdava de carrossel
Nos braços de um polvo amigo
E o búzio faria o favor
De servir de intercomunicador
Para eu falar contigo.

Quando a noite enfim trouxesse
A lua, para me dar um beijo,
Deitava-me numa conchinha
E ouvia uma historinha
Contada por um caranguejo." 

"A menina de sphia", in Poemas para as quatro Estações / Manuela Leitão. Lisboa: Máquina de voar. 
Imagem: Copyright - Cristina Falcão

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

Dezassete vezes tentou Ditosa levantar voo, e dezassete vezes acabou no chão depois de ter conseguido elevar-se uns poucos centímetros.
Sabetudo, mais magro que de costume, arrancara os pelos do bigode depois dos doze primeiros fracassos, e com miados tremendos tentava desculpar-se:
- Não entendo. Revi conscienciosamente a teoria do voo, comparei as instruções de Leonardo com tudo o que se diz na parte delicada à aerodinâmica, volume primeiro, Letra “A” da enciclopédia, e no entanto não conseguimos. É terrível! Terrível!
Os gatos aceitavam as suas explicações, e toda a sua atenção se centrava em Ditosa, que depois de cada tentativa falhada ia ficando mais triste e melancólica.
Depois do último fracasso, Colonello decidiu suspender as tentativas, pois a sua experiência dizia-lhe que a gaivota começava a perder confiança em si mesma, e isso era muito perigoso se de verdade queria voar.
- Talvez não o possa fazer – opinou Secretário. – Se calhar viveu tempo de mais connosco e perdeu a capacidade de voar.
- Seguindo as instruções técnicas e respeitando as leis da aerodinâmica, é possível voar. Não se esqueçam de que está tudo na enciclopédia – apontou Sabetudo.
- Pelo rabo da raia! – exclamou Barlavento. – Ela é uma gaivota e as gaivotas voam!
- Tem de voar. Prometi-o à mãe e a ela. Tem de voar – repetiu Zorbas,
- E o cumprimento dessa promessa obriga-nos a nós todos – recordou Colonello.
- Reconheçamos que somos incapazes de a ensinar a voar e que temos de procurar auxílio para além do mundo dos gatos – sugeriu Zorbas.
- Mia claramente, caro amico. Aonde é que queres chegar? – perguntou Colonello, sério.
- Peço autorização para quebrar o tabu pela primeira e última vez na minha vida – solicitou Zorbas fitando os seus companheiros nos olhos.
- Quebrar o tabu! – miaram os gatos pondo as garras de fora e eriçando os lombos.
Miar a língua dos humanos é tabu. Assim rezava a lei dos gatos, e não porque eles não tivessem interesse em comunicar com os humanos. O grande risco estava na resposta que os humanos dariam. Que fariam com um gato falante? Com toda a certeza iriam encerrá-lo numa jaula para o submeterem a toda a espécie de provas estúpidas, porque os humanos são geralmente incapazes de aceitar que um ser diferente deles os entenda e trate de se dar a entender. Os gatos conheciam, por exemplo, a triste sorte dos golfinhos, que se tinham comportado de uma maneira inteligente com os humanos e estes tinham-nos condenado a fazer de palhaços em espetáculos aquáticos. E sabiam também das humilhações a que os humanos sujeitam qualquer animal que se mostre inteligente e recetivo com eles. Por exemplo, os leões, os grandes felinos obrigados a viver entre grades á espera de que um cretino lhes meta a cabeça entre as mandíbulas; ou os papagaios, encerrados em gaiolas a repetir parvoíces. De tal modo que miar na linguagem dos humanos era um risco muito grande para os gatos.
- Fica aqui junto da Ditosa. Nós retiramo-nos para debater a tua petição – ordenou Colonello.
Longas horas durou a reunião dos gatos à porta fechada. Longas horas durante as quais Zorbas se deixou ficar deitado junto da gaivota, que não escondia a tristeza por não saber voar.
Era já noite quando terminaram. Zorbas aproximou-se deles para conhecer a decisão.
- Nós, gatos do porto autorizamos-te a quebrar o tabu só desta vez. Miarás apenas com um humano, mas antes decidiremos entre todos com qual deles – declarou Colonello solenemente.

História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar  / Luís Sepúlveda   
Imagem: Copyright  - Jim Braswell


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 ""Então isto é o céu", 
pensou, e teve de sorrir de si próprio. Não era nada respeitoso analisar o céu no
preciso momento em que lá chegava a voar.
   Conforme se afastava da Terra, acima das nuvens e numa formação apertada com as duas gaivotas brilhantes, verificou que o seu próprio corpo estava a tornar-se tão brilhante como o delas.
     É verdade que estava ali o jovem Fernão Capelo Gaivota, que sempre tinha vivido atrás dos seus olhos dourados, mas a forma exterior tinha mudado.
     Sentia que tinha um corpo de gaivota, só que voava muito melhor do que o seu velho corpo alguma vez tinha voado. "Incrível como, com metade do esforço", pensou, "consigo obter o dobro da velocidade e o dobro da eficiência dos meus melhores dias na Terra!"
     As suas penas reluziam, brancas como neve, e  as asas estavam macias e perfeitas, como folhas de prata polida. Encantado, começou a aprender mais sobre elas, a imprimir poder àquelas novas asas.
     A quatrocentos quilómetros por hora sentiu que estava quase a atingir a sua máxima velocidade de voo. Aos quatrocentos e quarenta achou que estava a voar tão depressa quanto seria possível e isso deixou-o ligeiramente desapontado. Havia um limite para o que este novo corpo conseguia fazer e embora fosse muito mais rápido do que o seu velho recorde de voo, continuava a ser um limite que exigiria um enorme esforço para ultrapassar. "No céu", pensou, "não deveria haver limites."
     As nuvens dissiparam-sem os seus acompanhantes gritaram "felizes aterragens, Fernão!" e desapareceram.
     Voava sobre um mar, em direção a uma acidentada linha costeira. Algumas gaivotas estavam a aproveitar as correntes de vento nas falésias. Ao longe, para norte, mesmo na linha do horizonte, voavam mais umas quantas. Novas paragens, novos pensamentos, novas questões. "Porque é que há tão poucas gaivotas? O paraíso deveria ter bandos de gaivotas! E porque é que estou tão cansado de repente? Não é suposto as gaivotas ficarem cansadas, nem dormirem, no paraíso.
     Onde é que ele teria ouvido aquilo?"

Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018
Imagem: Copyright - Olhares.pt


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Minutos de leitura


"Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim."

"Mar Sonoro", in Dia do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Assírio & Alvim, 2019.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Minutos de leitura

     

Fernão Capelo Gaivota durante os dias seguintes tentou comportar-se como as outras gaivotas; ele tentou mesmo, guinchando e lutando com o bando à volta dos cais e dos barcos de pesca, mergulhando sobre restos de peixe e de pão. Mas não conseguia que isso resultasse.
     "É tudo tão inútil", pensou, largando deliberadamente aos pés de uma velha gaivota faminta, que o perseguia, uma anchova conquistada com dificuldade. "Podia estar a usar todo este tempo para aprender a voar. Há tanto para aprender!"
     Não demorou muito até Fernão Capelo Gaivota estar novamente sozinho, bem longe, no mar alto, com fome, feliz, a aprender.
     O tema era a velocidade e numa semana de prática ele aprendeu mais sobre isso do que a mais rápida gaivota viva.
      A trezentos metros de altitude, a bater as asas tão depressa quanto conseguia, ele impulsionou-se para um vertiginosa mergulho em direção às ondas e aprendeu porque é que as gaivotas não fazem mergulhos vertiginosos. Em apenas seis segundos atingiu os cento e dez quilómetros por hora, a velocidade a que as asas se tornam instáveis quando sobem.
     Aconteceu vezes sem conta. Mesmo sendo tão cuidadoso e a trabalhar com o máximo da sua habilidade, perdia sempre o controlo a alta velocidade.

Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018.
Imagem: Copyright - Nova Acrópole

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Minutos de leitura

     

"A maioria das gaivotas não se dá ao trabalho de aprender mais do que os rudimentos do voo: como ir da costa até à comida e voltar. Para a maioria das gaivotas, o que interessa não é voar, mas sim comer. Para esta gaivota, porém, não era a comida que interessava, mas sim o voo. Mais do que qualquer outra coisa, Fernão Capelo Gaivota adorava voar.
     Acabou por descobrir que esta maneira de pensar não o tornava popular entre as outras aves. Até os próprios pais ficaram desapontados por Fernão passar dias inteiros sozinho, a fazer centenas de voos rasantes, a experimentar.
     Ele não sabia, por exemplo, porque é que, quando voava sobre a água a altitudes inferiores a metade do comprimento da sua asa, conseguia manter-se no ar mais tempo, com menos esforço. As planagens não terminavam com o habitual chapão de patas no mar, mas com um poisar longo e suave, com as patas bem apertadas contra o corpo. Quando ele começou a poisar na praia sem usar as patas, e depois a medir a passos o comprimento do seu voo na areia, os pais ficaram mesmo desapontados.
     - Porquê, Fernão, porquê? - perguntou-lhe a mãe. - Porque é que é tão difícil seres como o resto do bando, Fernão? Porque é que não deixas os voos a baixa altitude para os pelicanos e os albatrozes? Porque é que não comes? Filho, est´s penas e ossos!
     - Não me importo de estar penas e ossos, mãe. Eu só quero saber o que é que consigo e não consigo fazer no ar, só isso. Só quero saber.
     - Presta atenção, Fernão - disse-lhe o pai, com amabilidade.
- O inverno não está longe. Haverá menos barcos e os peixes de superfície vão nadar a maior profundidade. Se tens de estudar, então estuda a comida e como a obter. Este assunto do voo é muito bonito, mas sabes que não podes comer um voo rasante. Não te esqueças de que a razão por que voas é para comer."

Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Minutos de leitura

Era manhã e 

o novo sol salpicava de dourado as ondas de um mar calmo.
   A dois quilómetros da costa, um barco de pesca lançava iso à água e o chamamento para o Bando do Pequeno-almoço espalhou-se pelo ar, até uma multidão de mil gaivotas chegar para disputar os pedaços de comida. Era o início de outro dia atarefado.
   Mas, a grande distância, sozinho e muito para lá do barco e da costa, Fernão Capelo Gaivota estava a praticar. A trinta metros de altitude, no céu, ele baixou a s patas com membranas, elevou o bico e esforçou-se para continuar a virar, com uma difícil e dolorosa torção das asas. A curva permitiu-lhe voar mais devagar e, então, ele abrandou até o vento lhe tocar o rosto como um sussurro, até o oceano ficar imóvel debaixo dele. Semicerrou os olhos, numa concentração intensa, suspendeu a respiração, forçou mais,,, dois... centímetros... de... curva... E então as suas penas agitaram-se, ele parou e caiu.
   Como sabem, as gaivotas nunca hesitam, nunca param. Atrapalharem-se no ar é para elas uma vergonha e uma desonra. Mas Fernão Capelo gaivota não era um pássaro normal. Sem se sentir envergonhado, estendeu as asas outra vez para aquela curva difícil que lhe fazia estremecer o corpo e desacelerou, desacelerou até parar novamente.
 
Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018. 
Ilustração: Copyright - Arthur Grosset

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Minutos de leitura

"No rochedo mais alto de uma minúscula ilha
nos confins do mundo, ergue-se um farol.
Foi construído para durar para sempre,
alumiando o mar com a sua luz,
guiando os navios que passam.

Do crepúsculo ao amanhecer, o farol relampeja.
   Olá!
      ...Olá!
          ... Olá!
             ... Olá, Farol!

Chega o novo faroleiro para substituir o antigo
e continuar a cuidar da luz.
Ele limpa as lentes e acrescenta petróleo
e apara a ponta queimada do pavio.
Durante a noite, dá corda ao mecanismo
que mantém o candeeiro em movimento.
Durante o dia, pinta as divisões redondas
com tinta verde-mar.
Ele escreve no diário do farol, cose à mão
e escuta o vento que se levanta lá fora.

O vento inspira fundo e sopra e sopra.

Olá!
   ...Olá!
       ...Olá!

O faroleiro ferve água e bebe o seu chá,
enquanto, da janela, pesca bacalhau.
Ele põe a mesa e trauteia uma música
e anseia por ter alguém com quem conversar.

Quando a saudade aperta, escreve-lhe uma carta
e lança-a às ondas.
Ele cuida da luz, escreve no diário do farol
e aguarda pela resposta dela.

O céu escure, e as ondas agiganta-se e rebentam.
Olá!
   ...Olá!
       ...Olá!"

Olá, Farol! / Sophie Blackall. Amadora: Fábula, 2019

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 
Dezassete vezes tentou Ditosa levantar voo, e dezassete vezes acabou no chão depois de ter conseguido elevar-se uns poucos centímetros.
Sabetudo, mais magro que de costume, arrancara os pelos do bigode depois dos doze primeiros fracassos, e com miados tremendos tentava desculpar-se:
- Não entendo. Revi conscienciosamente a teoria do voo, comparei as instruções de Leonardo com tudo o que se diz na parte delicada à aerodinâmica, volume primeiro, Letra “A” da enciclopédia, e no entanto não conseguimos. É terrível! Terrível!
Os gatos aceitavam as suas explicações, e toda a sua atenção se centrava em Ditosa, que depois de cada tentativa falhada ia ficando mais triste e melancólica.
Depois do último fracasso, Colonello decidiu suspender as tentativas, pois a sua experiência dizia-lhe que a gaivota começava a perder confiança em si mesma, e isso era muito perigoso se de verdade queria voar.
- Talvez não o possa fazer – opinou Secretário. – Se calhar viveu tempo de mais connosco e perdeu a capacidade de voar.
- Seguindo as instruções técnicas e respeitando as leis da aerodinâmica, é possível voar. Não se esqueçam de que está tudo na enciclopédia – apontou Sabetudo.
- Pelo rabo da raia! – exclamou Barlavento. – Ela é uma gaivota e as gaivotas voam!
- Tem de voar. Prometi-o à mãe e a ela. Tem de voar – repetiu Zorbas,
- E o cumprimento dessa promessa obriga-nos a nós todos – recordou Colonello.
- Reconheçamos que somos incapazes de a ensinar a voar e que temos de procurar auxílio para além do mundo dos gatos – sugeriu Zorbas.
- Mia claramente, caro amico. Aonde é que queres chegar? – perguntou Colonello, sério.
- Peço autorização para quebrar o tabu pela primeira e última vez na minha vida – solicitou Zorbas fitando os seus companheiros nos olhos.
- Quebrar o tabu! – miaram os gatos pondo as garras de fora e eriçando os lombos.
Miar a língua dos humanos é tabu. Assim rezava a lei dos gatos, e não porque eles não tivessem interesse em comunicar com os humanos. O grande risco estava na resposta que os humanos dariam. Que fariam com um gato falante? Com toda a certeza iriam encerrá-lo numa jaula para o submeterem a toda a espécie de provas estúpidas, porque os humanos são geralmente incapazes de aceitar que um ser diferente deles os entenda e trate de se dar a entender. Os gatos conheciam, por exemplo, a triste sorte dos golfinhos, que se tinham comportado de uma maneira inteligente com os humanos e estes tinham-nos condenado a fazer de palhaços em espetáculos aquáticos. E sabiam também das humilhações a que os humanos sujeitam qualquer animal que se mostre inteligente e recetivo com eles. Por exemplo, os leões, os grandes felinos obrigados a viver entre grades á espera de que um cretino lhes meta a cabeça entre as mandíbulas; ou os papagaios, encerrados em gaiolas a repetir parvoíces. De tal modo que miar na linguagem dos humanos era um risco muito grande para os gatos.
- Fica aqui junto da Ditosa. Nós retiramo-nos para debater a tua petição – ordenou Colonello.
Longas horas durou a reunião dos gatos à porta fechada. Longas horas durante as quais Zorbas se deixou ficar deitado junto da gaivota, que não escondia a tristeza por não saber voar.
Era já noite quando terminaram. Zorbas aproximou-se deles para conhecer a decisão.
- Nós, gatos do porto autorizamos-te a quebrar o tabu só desta vez. Miarás apenas com um humano, mas antes decidiremos entre todos com qual deles – declarou Colonello solenemente.

História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar  / Luís Sepúlveda   
Imagem: Copyright  - Jim Braswell

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Minutos de leitura

"Dia do mar no ar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas.
Dia do mar no meu quarto - cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.
Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens."
 
"Dia do mar no ar, construído", in Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa. Caminho, 2001.
Imagem: Copyright - Eider Oliveira

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

Lá em cima do poleiro o vigia ergueu-se de salto, deu sinal de baleia à vista com o búzio e todos os homens desataram a correr para as canoas. Nas Lajes, noutro dia, saía o enterro dum baleeiro morto no mar, quando do Alto da Forca anunciaram o bicho. Ia tudo compungido - ia a mulher compungida e os pescadores compungidos, o padre, o sacristão, a cruz e a caldeira - iam aqueles homens rudes e tisnados em passo de caso grave e fatos de ver a Deus. (...)
Baleia! baleia!... Deixam um casamento ou enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a justiça, e correm desesperados a arrear à baleia. No Cais do Pico e nas Lajes ninguém se afasta da praia. Estão sempre à espera do sinal e com o ouvido à escuta, os homens nos campos, as mulheres nos casebres. E enquanto falam, comem ou trabalham, lá no fundo remói sempre a mesma preocupação. São tão apaixonados que até este cheiro horrível, que faz náuseas e que se entranha na comida e no fato, lhes cheira sempre bem.
- Baleia! baleia!"

A pesca da baleia e outras narrativas / Raul Brandão. Porto: Porto Editora, 2014
Imagem: A baleia-azul nas Lajes. Museu dos baleeiros, ilha do Pico.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Minutos de leitura


Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imenso de regresso.

a minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

"Pirata", in  Coral / Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Assírio & Alvim, 2013. 
Imagem: Velas e cordas do mastro principal de um navio caravela

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

Não sei se faz sentido falar dos Açores como de ilhas perfeitas; mas nelas mora um povo que descende de toda a memória portuguesa, e cuja experiência de insularidade lhe confere uma identidade anímica e cultural muito própria. Ela vem tanto da história dos séculos e do povoamento, como dos seus mitos de sempre: a solidão marítima e a visão da ilha em frente, a unidade e a diversidade de uma paisagem em confronto ou em síntese de grandeza, o tempo que entra na alma, a fé numa eternidade feita à medida de cada homem.
Não há terras mais belas, em todo o território português, do que as dos Açores. Nem em nenhum outro país europeu. Os campos são ainda mais exuberantes do que o verde Minho ou a Irlanda; as lagoas, mais lendárias e sobrenaturais do que as da Escócia ou os mil lagos finlandeses; a arquitectura da paisagem, que sobe da costa até ao interior em grandes e caprichosos arcos montanhosos, nada fica a dver às alturas de montanha que movem e encantam o olhar da Europa - isto dizem-no os próprios europeus que para ali viajam.
Mas as paisagens não existem sozinhas. Os olhos, sim. O nosso modo de ver o arquipélago pode constituir um trabalho ou ou prazer. Os Açores serão sempre uma aventura para a alma e um deslumbramento para o olhar.

Açores, o segredo das ilhas / João de Melo. Alfragide: D.Quixote, 2016.
Imagem: Ilha de são Miguel, Açores.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Minutos de leitura

 

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.

Não há palavra com tanto mar
como a palavra
Açores.



"Tanto mar", in Escrito no mar; Livro dos Açores. Lisboa: Sextante Editora: 2008
Imagem: © – Paulo Ricca; As ondas na praia vulcânica, Faial.


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Minutos de leitura


"Há na casa algo de rude e elementar que nenhuma riqueza mundana pode corromper,e, apesar do seu halo de solidão e do seu isolamento na duna, a casa não é margem mas antes convergência, encontro, centro. 
Quem nas janelas do corredor olha para fora e vê o muro de granito, as árvores na distância e os telhados a oeste, aquilo que vê aparecer-lhe como um lugar qualquer da terra, como um acidente, um lugar ocasional entre o acaso das coisas.
Mas quem do quarto central avança para a varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra o seu rosto e sua evidência.
Pelo gesto de desdobrar o pescoço e de sacudir as crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no contínuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. O tombar da rebentação povoa o espaço de exultação e clamor. No subir e descer da vaga, o universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzidias, maresia e brumas sobem como um incenso de celebração.
E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar criado que preserva em si a força nua do primeiro dia criado."

A casa do mar", in Histórias da terra e do mar. Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Figueirinhas,2006
Imagem: Copyright - Waves, Tim Forcade.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Minutos de leitura

 

"Entre a casa e a cidade longínqua estendem-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem também os lírios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias.
Dentro da casa o mar ressoa como no interior de i«um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir da louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa - é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada coisa é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada.

"A casa do mar", in Histórias da terra e do mar. Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Figueirinhas,2006
Imagem: Copyright - John Constable, Spring-clouds.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Minutos de leitura

 

Mas hoje acordo, subo ao convés e tenho uma alegria frenética. Tudo isto, todo este azul, toda esta frescura, me entra em jorro pelos olhos dentro. A tinta azul não só ondula – estremece em pequenos grãos vivos, duma acção extraordinária, e o mundo sempre novo que me rodeia penetra-me do seu bafo e comunica-me a sua vida. (…) Luz cinzenta, luz doirada – transparência azul boiando cheia de cintilações ao longe, e depois mais luz viva que nasce e estremece diante da grande massa escura que sai do mar sobre a magia do nascente (…) E é esta luz que me acompanha e nunca mais me larga. A mim que vivo de luz límpida, e que acordo todas as manhãs com o pensamento na luz.” 

As Ilhas Desconhecidas / Raul Brandão. Lisboa: Quetzal, páginas. 12, 15 e 19
Imagem – No mar de São Miguel, Açores.