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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Minutos de leitura

 

"No cinzento do céu,
que olho da minha janela,
encontro a melancolia
de quem reza na capela.
 Na folha castanha
de um bosque de outono,
encontro aquela queda
que me faz sair do trono.
Na onda azul do mar
que me faz sempre sorrir,
encontro o abrandar
para poder refletir.

Quando vejo o verde campo,
na estrada da minha aldeia,
encontro verdadeiro descanso
para uma alma que anseia.

No marelo do sol,
que aquece e ilumina,
esncontro e sigo o farol,
onde a alegria culmina.

No vermelho desta flor
que observo no caminho,
encontro um grande amor
que hoje lembro com carinho.
No pássaro multicolor
que canta bem lá no alto,
encontro paz e calor
que expulsa o sobressalto.
Nesta paleta de cores
que pintam a minha vida,
encontro cada sentimento
na natureza vivida."
José David Costa, in A dança das palavras. Alfragide: Caminho, 2016.  
Imagem: Copyright - 薫風。

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Minutos de leitura


Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte

E em que o sono parecia disposto a não vir
Fui estender-me na praia sozinho ao relento
E ali longe do tempo acabei por dormir

Acordei com o toque suave de um beijo
E uma cara sardenta encheu-me o olhar
Ainda meio a sonhar perguntei-lhe quem era
Ela riu-se e disse baixinho, estrela do mar

Sou a estrela do mar
Só ele obedeço, só ele me conhece
Só ele sabe quem sou no principio e no fim
Só a ele sou fiel e é ele quem me protege
Quando alguém quer à força
Ser dono de mim

Não se era maior o desejo ou o espanto
Só sei que por instantes deixei de pensar
Uma chama invisível, incendiou-me o peito
Qualquer coisa impossível, fez-me acreditar

Em silêncio trocámos segredos e abraços
Inscrevemos no espaço um novo alfabeto
Já passaram mil anos sobre o nosso encontro
Mas mil anos são poucos ou nada para a estrela do mar

Estrela do mar
Só ele obedeço, só ele me conhece
Só ele sabe quem sou no principio e no fim
Só a ele sou fiel e é ele quem me protege
Quando alguém quer à força
Ser dono de mim

Jorge Palma , "Estrela do mar"

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

"Ah, se eu fosse a menina do mar,
A menina que a Sophia
Pôs-se um dia a imaginar!...

Viver numa poça de água,
Fazer dela o meu abrigo
- Cabeça tonta, esse mar,
Que se esquece de levar
As poças de água consigo!

Pediria às algas verdes
Que fizessem de alface
E à estrela.do-ar, com os seus braços,
Que me desse mil abraços
Sempre que eu precisasse.

Como cabide da roupa
Usaria o camarão
E pediria à anémona
Que me enfeitasse a lapela
Ou fizesse de botão.

Ondeava o meu cabelo
De manhã, ao levantar;
Fazia do mexilhão a sacola
E iria para a escola
Montada na pulga-do-mar.

Amdava de carrossel
Nos braços de um polvo amigo
E o búzio faria o favor
De servir de intercomunicador
Para eu falar contigo.

Quando a noite enfim trouxesse
A lua, para me dar um beijo,
Deitava-me numa conchinha
E ouvia uma historinha
Contada por um caranguejo." 

"A menina de sphia", in Poemas para as quatro Estações / Manuela Leitão. Lisboa: Máquina de voar. 
Imagem: Copyright - Cristina Falcão

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

Dezassete vezes tentou Ditosa levantar voo, e dezassete vezes acabou no chão depois de ter conseguido elevar-se uns poucos centímetros.
Sabetudo, mais magro que de costume, arrancara os pelos do bigode depois dos doze primeiros fracassos, e com miados tremendos tentava desculpar-se:
- Não entendo. Revi conscienciosamente a teoria do voo, comparei as instruções de Leonardo com tudo o que se diz na parte delicada à aerodinâmica, volume primeiro, Letra “A” da enciclopédia, e no entanto não conseguimos. É terrível! Terrível!
Os gatos aceitavam as suas explicações, e toda a sua atenção se centrava em Ditosa, que depois de cada tentativa falhada ia ficando mais triste e melancólica.
Depois do último fracasso, Colonello decidiu suspender as tentativas, pois a sua experiência dizia-lhe que a gaivota começava a perder confiança em si mesma, e isso era muito perigoso se de verdade queria voar.
- Talvez não o possa fazer – opinou Secretário. – Se calhar viveu tempo de mais connosco e perdeu a capacidade de voar.
- Seguindo as instruções técnicas e respeitando as leis da aerodinâmica, é possível voar. Não se esqueçam de que está tudo na enciclopédia – apontou Sabetudo.
- Pelo rabo da raia! – exclamou Barlavento. – Ela é uma gaivota e as gaivotas voam!
- Tem de voar. Prometi-o à mãe e a ela. Tem de voar – repetiu Zorbas,
- E o cumprimento dessa promessa obriga-nos a nós todos – recordou Colonello.
- Reconheçamos que somos incapazes de a ensinar a voar e que temos de procurar auxílio para além do mundo dos gatos – sugeriu Zorbas.
- Mia claramente, caro amico. Aonde é que queres chegar? – perguntou Colonello, sério.
- Peço autorização para quebrar o tabu pela primeira e última vez na minha vida – solicitou Zorbas fitando os seus companheiros nos olhos.
- Quebrar o tabu! – miaram os gatos pondo as garras de fora e eriçando os lombos.
Miar a língua dos humanos é tabu. Assim rezava a lei dos gatos, e não porque eles não tivessem interesse em comunicar com os humanos. O grande risco estava na resposta que os humanos dariam. Que fariam com um gato falante? Com toda a certeza iriam encerrá-lo numa jaula para o submeterem a toda a espécie de provas estúpidas, porque os humanos são geralmente incapazes de aceitar que um ser diferente deles os entenda e trate de se dar a entender. Os gatos conheciam, por exemplo, a triste sorte dos golfinhos, que se tinham comportado de uma maneira inteligente com os humanos e estes tinham-nos condenado a fazer de palhaços em espetáculos aquáticos. E sabiam também das humilhações a que os humanos sujeitam qualquer animal que se mostre inteligente e recetivo com eles. Por exemplo, os leões, os grandes felinos obrigados a viver entre grades á espera de que um cretino lhes meta a cabeça entre as mandíbulas; ou os papagaios, encerrados em gaiolas a repetir parvoíces. De tal modo que miar na linguagem dos humanos era um risco muito grande para os gatos.
- Fica aqui junto da Ditosa. Nós retiramo-nos para debater a tua petição – ordenou Colonello.
Longas horas durou a reunião dos gatos à porta fechada. Longas horas durante as quais Zorbas se deixou ficar deitado junto da gaivota, que não escondia a tristeza por não saber voar.
Era já noite quando terminaram. Zorbas aproximou-se deles para conhecer a decisão.
- Nós, gatos do porto autorizamos-te a quebrar o tabu só desta vez. Miarás apenas com um humano, mas antes decidiremos entre todos com qual deles – declarou Colonello solenemente.

História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar  / Luís Sepúlveda   
Imagem: Copyright  - Jim Braswell


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 ""Então isto é o céu", 
pensou, e teve de sorrir de si próprio. Não era nada respeitoso analisar o céu no
preciso momento em que lá chegava a voar.
   Conforme se afastava da Terra, acima das nuvens e numa formação apertada com as duas gaivotas brilhantes, verificou que o seu próprio corpo estava a tornar-se tão brilhante como o delas.
     É verdade que estava ali o jovem Fernão Capelo Gaivota, que sempre tinha vivido atrás dos seus olhos dourados, mas a forma exterior tinha mudado.
     Sentia que tinha um corpo de gaivota, só que voava muito melhor do que o seu velho corpo alguma vez tinha voado. "Incrível como, com metade do esforço", pensou, "consigo obter o dobro da velocidade e o dobro da eficiência dos meus melhores dias na Terra!"
     As suas penas reluziam, brancas como neve, e  as asas estavam macias e perfeitas, como folhas de prata polida. Encantado, começou a aprender mais sobre elas, a imprimir poder àquelas novas asas.
     A quatrocentos quilómetros por hora sentiu que estava quase a atingir a sua máxima velocidade de voo. Aos quatrocentos e quarenta achou que estava a voar tão depressa quanto seria possível e isso deixou-o ligeiramente desapontado. Havia um limite para o que este novo corpo conseguia fazer e embora fosse muito mais rápido do que o seu velho recorde de voo, continuava a ser um limite que exigiria um enorme esforço para ultrapassar. "No céu", pensou, "não deveria haver limites."
     As nuvens dissiparam-sem os seus acompanhantes gritaram "felizes aterragens, Fernão!" e desapareceram.
     Voava sobre um mar, em direção a uma acidentada linha costeira. Algumas gaivotas estavam a aproveitar as correntes de vento nas falésias. Ao longe, para norte, mesmo na linha do horizonte, voavam mais umas quantas. Novas paragens, novos pensamentos, novas questões. "Porque é que há tão poucas gaivotas? O paraíso deveria ter bandos de gaivotas! E porque é que estou tão cansado de repente? Não é suposto as gaivotas ficarem cansadas, nem dormirem, no paraíso.
     Onde é que ele teria ouvido aquilo?"

Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018
Imagem: Copyright - Olhares.pt


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Minutos de leitura


"Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim."

"Mar Sonoro", in Dia do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Assírio & Alvim, 2019.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Minutos de leitura

     

Fernão Capelo Gaivota durante os dias seguintes tentou comportar-se como as outras gaivotas; ele tentou mesmo, guinchando e lutando com o bando à volta dos cais e dos barcos de pesca, mergulhando sobre restos de peixe e de pão. Mas não conseguia que isso resultasse.
     "É tudo tão inútil", pensou, largando deliberadamente aos pés de uma velha gaivota faminta, que o perseguia, uma anchova conquistada com dificuldade. "Podia estar a usar todo este tempo para aprender a voar. Há tanto para aprender!"
     Não demorou muito até Fernão Capelo Gaivota estar novamente sozinho, bem longe, no mar alto, com fome, feliz, a aprender.
     O tema era a velocidade e numa semana de prática ele aprendeu mais sobre isso do que a mais rápida gaivota viva.
      A trezentos metros de altitude, a bater as asas tão depressa quanto conseguia, ele impulsionou-se para um vertiginosa mergulho em direção às ondas e aprendeu porque é que as gaivotas não fazem mergulhos vertiginosos. Em apenas seis segundos atingiu os cento e dez quilómetros por hora, a velocidade a que as asas se tornam instáveis quando sobem.
     Aconteceu vezes sem conta. Mesmo sendo tão cuidadoso e a trabalhar com o máximo da sua habilidade, perdia sempre o controlo a alta velocidade.

Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018.
Imagem: Copyright - Nova Acrópole

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Minutos de leitura

     

"A maioria das gaivotas não se dá ao trabalho de aprender mais do que os rudimentos do voo: como ir da costa até à comida e voltar. Para a maioria das gaivotas, o que interessa não é voar, mas sim comer. Para esta gaivota, porém, não era a comida que interessava, mas sim o voo. Mais do que qualquer outra coisa, Fernão Capelo Gaivota adorava voar.
     Acabou por descobrir que esta maneira de pensar não o tornava popular entre as outras aves. Até os próprios pais ficaram desapontados por Fernão passar dias inteiros sozinho, a fazer centenas de voos rasantes, a experimentar.
     Ele não sabia, por exemplo, porque é que, quando voava sobre a água a altitudes inferiores a metade do comprimento da sua asa, conseguia manter-se no ar mais tempo, com menos esforço. As planagens não terminavam com o habitual chapão de patas no mar, mas com um poisar longo e suave, com as patas bem apertadas contra o corpo. Quando ele começou a poisar na praia sem usar as patas, e depois a medir a passos o comprimento do seu voo na areia, os pais ficaram mesmo desapontados.
     - Porquê, Fernão, porquê? - perguntou-lhe a mãe. - Porque é que é tão difícil seres como o resto do bando, Fernão? Porque é que não deixas os voos a baixa altitude para os pelicanos e os albatrozes? Porque é que não comes? Filho, est´s penas e ossos!
     - Não me importo de estar penas e ossos, mãe. Eu só quero saber o que é que consigo e não consigo fazer no ar, só isso. Só quero saber.
     - Presta atenção, Fernão - disse-lhe o pai, com amabilidade.
- O inverno não está longe. Haverá menos barcos e os peixes de superfície vão nadar a maior profundidade. Se tens de estudar, então estuda a comida e como a obter. Este assunto do voo é muito bonito, mas sabes que não podes comer um voo rasante. Não te esqueças de que a razão por que voas é para comer."

Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Minutos de leitura

Era manhã e 

o novo sol salpicava de dourado as ondas de um mar calmo.
   A dois quilómetros da costa, um barco de pesca lançava iso à água e o chamamento para o Bando do Pequeno-almoço espalhou-se pelo ar, até uma multidão de mil gaivotas chegar para disputar os pedaços de comida. Era o início de outro dia atarefado.
   Mas, a grande distância, sozinho e muito para lá do barco e da costa, Fernão Capelo Gaivota estava a praticar. A trinta metros de altitude, no céu, ele baixou a s patas com membranas, elevou o bico e esforçou-se para continuar a virar, com uma difícil e dolorosa torção das asas. A curva permitiu-lhe voar mais devagar e, então, ele abrandou até o vento lhe tocar o rosto como um sussurro, até o oceano ficar imóvel debaixo dele. Semicerrou os olhos, numa concentração intensa, suspendeu a respiração, forçou mais,,, dois... centímetros... de... curva... E então as suas penas agitaram-se, ele parou e caiu.
   Como sabem, as gaivotas nunca hesitam, nunca param. Atrapalharem-se no ar é para elas uma vergonha e uma desonra. Mas Fernão Capelo gaivota não era um pássaro normal. Sem se sentir envergonhado, estendeu as asas outra vez para aquela curva difícil que lhe fazia estremecer o corpo e desacelerou, desacelerou até parar novamente.
 
Fernão Capelo Gaivota / Richard Bach. Alfragide: Lua de Papel, 2018. 
Ilustração: Copyright - Arthur Grosset

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Minutos de leitura

"No rochedo mais alto de uma minúscula ilha
nos confins do mundo, ergue-se um farol.
Foi construído para durar para sempre,
alumiando o mar com a sua luz,
guiando os navios que passam.

Do crepúsculo ao amanhecer, o farol relampeja.
   Olá!
      ...Olá!
          ... Olá!
             ... Olá, Farol!

Chega o novo faroleiro para substituir o antigo
e continuar a cuidar da luz.
Ele limpa as lentes e acrescenta petróleo
e apara a ponta queimada do pavio.
Durante a noite, dá corda ao mecanismo
que mantém o candeeiro em movimento.
Durante o dia, pinta as divisões redondas
com tinta verde-mar.
Ele escreve no diário do farol, cose à mão
e escuta o vento que se levanta lá fora.

O vento inspira fundo e sopra e sopra.

Olá!
   ...Olá!
       ...Olá!

O faroleiro ferve água e bebe o seu chá,
enquanto, da janela, pesca bacalhau.
Ele põe a mesa e trauteia uma música
e anseia por ter alguém com quem conversar.

Quando a saudade aperta, escreve-lhe uma carta
e lança-a às ondas.
Ele cuida da luz, escreve no diário do farol
e aguarda pela resposta dela.

O céu escure, e as ondas agiganta-se e rebentam.
Olá!
   ...Olá!
       ...Olá!"

Olá, Farol! / Sophie Blackall. Amadora: Fábula, 2019

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 
Dezassete vezes tentou Ditosa levantar voo, e dezassete vezes acabou no chão depois de ter conseguido elevar-se uns poucos centímetros.
Sabetudo, mais magro que de costume, arrancara os pelos do bigode depois dos doze primeiros fracassos, e com miados tremendos tentava desculpar-se:
- Não entendo. Revi conscienciosamente a teoria do voo, comparei as instruções de Leonardo com tudo o que se diz na parte delicada à aerodinâmica, volume primeiro, Letra “A” da enciclopédia, e no entanto não conseguimos. É terrível! Terrível!
Os gatos aceitavam as suas explicações, e toda a sua atenção se centrava em Ditosa, que depois de cada tentativa falhada ia ficando mais triste e melancólica.
Depois do último fracasso, Colonello decidiu suspender as tentativas, pois a sua experiência dizia-lhe que a gaivota começava a perder confiança em si mesma, e isso era muito perigoso se de verdade queria voar.
- Talvez não o possa fazer – opinou Secretário. – Se calhar viveu tempo de mais connosco e perdeu a capacidade de voar.
- Seguindo as instruções técnicas e respeitando as leis da aerodinâmica, é possível voar. Não se esqueçam de que está tudo na enciclopédia – apontou Sabetudo.
- Pelo rabo da raia! – exclamou Barlavento. – Ela é uma gaivota e as gaivotas voam!
- Tem de voar. Prometi-o à mãe e a ela. Tem de voar – repetiu Zorbas,
- E o cumprimento dessa promessa obriga-nos a nós todos – recordou Colonello.
- Reconheçamos que somos incapazes de a ensinar a voar e que temos de procurar auxílio para além do mundo dos gatos – sugeriu Zorbas.
- Mia claramente, caro amico. Aonde é que queres chegar? – perguntou Colonello, sério.
- Peço autorização para quebrar o tabu pela primeira e última vez na minha vida – solicitou Zorbas fitando os seus companheiros nos olhos.
- Quebrar o tabu! – miaram os gatos pondo as garras de fora e eriçando os lombos.
Miar a língua dos humanos é tabu. Assim rezava a lei dos gatos, e não porque eles não tivessem interesse em comunicar com os humanos. O grande risco estava na resposta que os humanos dariam. Que fariam com um gato falante? Com toda a certeza iriam encerrá-lo numa jaula para o submeterem a toda a espécie de provas estúpidas, porque os humanos são geralmente incapazes de aceitar que um ser diferente deles os entenda e trate de se dar a entender. Os gatos conheciam, por exemplo, a triste sorte dos golfinhos, que se tinham comportado de uma maneira inteligente com os humanos e estes tinham-nos condenado a fazer de palhaços em espetáculos aquáticos. E sabiam também das humilhações a que os humanos sujeitam qualquer animal que se mostre inteligente e recetivo com eles. Por exemplo, os leões, os grandes felinos obrigados a viver entre grades á espera de que um cretino lhes meta a cabeça entre as mandíbulas; ou os papagaios, encerrados em gaiolas a repetir parvoíces. De tal modo que miar na linguagem dos humanos era um risco muito grande para os gatos.
- Fica aqui junto da Ditosa. Nós retiramo-nos para debater a tua petição – ordenou Colonello.
Longas horas durou a reunião dos gatos à porta fechada. Longas horas durante as quais Zorbas se deixou ficar deitado junto da gaivota, que não escondia a tristeza por não saber voar.
Era já noite quando terminaram. Zorbas aproximou-se deles para conhecer a decisão.
- Nós, gatos do porto autorizamos-te a quebrar o tabu só desta vez. Miarás apenas com um humano, mas antes decidiremos entre todos com qual deles – declarou Colonello solenemente.

História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar  / Luís Sepúlveda   
Imagem: Copyright  - Jim Braswell

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Minutos de leitura

"Nem sempre nos lembramos, mas os oceanos têm três funções muito importantes na vida do planeta: são o principal regulador do clima, produzem mais de cinquenta por cento do oxigénio que respiramos e são o habitat e a fonte de alimento de uma grande quantidade de seres vivos.
 
Os oceanos funcionam como um termóstato do planeta, pois regulam a temperatura e absorvem e armazenam grande parte da radiação do sol, impedindo que a temperatura da Terra seja muito quente. Para além disso, através das correntes oceânicas, redistribuem este calor pelas diferentes regiões, contribuindo para a temperatura confortável que temos na Terra (e que torna possível a vida da espécie humana).
 
Esquecemos muitas vezes que não são só as árvores e as florestas que nos dão oxigénio. Na verdade, os oceanos são os responsáveis pela maior parte do oxigénio que respiramos. Isto acontece porque, flutuando pelos oceanos, existe uma enorme massa de algas microscópicas chamadas fitoplâncton que faz exatamente o mesmo que todas as plantas fazem, através da fotossíntese: absorver dióxido de carbono e produzir oxigénio. Na verdade, mais de metade do oxigénio que respiramos é fabricado pelas microalgas dos oceanos!
 
Se os oceanos ficarem cheios de plástico e poluentes, esta massa de microalgas desaparecerá rapidamente. Tal poderá acontecer porque, para além das substâncias tóxicas do plástico que destroem algumas destas microalgas, o facto de haver muito plástico a flutuar faz com que a luz tenha dificuldade em penetrar na água. E, sem luz do sol, as microalgas morrem."
 
Plasticus Maritimus / Ana Pêgo. Carcavelos: Planeta Tangerina, 2019                 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

Ultrapassadas as desagradáveis barbas da boca, entrei no salão de honra da baleia-azul, bastante confortável. Todo pintado de cor-de-rosa, tinha uma ampla janela aberta ao nível da menina-do-olho e foi através dela que eu pude observar algumas das maravilhas do mundo submarino. Vi, por exemplo, dois tubarões-tigres que nos seguiram durante algum tempo. Ameaçadores, eles rondaram o corpanzil da baleia-azul, mas os dois roncos surdos que ela largou foram suficientes para os afastar. Ninguém brinca com uma baleia-azul, nem sequer o tubarão tigre!
Chegados aos arrabaldes da cidade de Nacar, a baleia-azul fez-me descer numa espécie de estufa de vidro.

- Sabes - disse ela -, não posso pousar na cidade devido ao meu tamanho. Sou assim uma espécie de Jumbo Jet dos mares, especialista em percorrer grandes distâncias. Tu vais aguardar aqui a chegada de uma tritonave que te vai transportar ao centro da cidade. Adeus. Félix, boa sorte.

Enquanto esperava a chegada da tritonave eu observei o aspecto exterior de Nacar: era soberba, a cidade! Vista à distância, ela recordava-me vagamente um navio voador que tivesse pousado por acaso no fundo do mar. Vi aproximar-se um objecto que navegava a grande velocidade. Pousou sobre o telhado de vidro da estufa onde eu estava instalado, fez descer uma mangueira de sucção e senti-me aspirado por uma espécie de aspirador gigante.

O Búzio de Nacar / Carlos Correia; il. Henrique Cayatte. Alfragide: Caminho, 1986.
Imagem: Copyright -  Astronoy LÇessons

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Minutos de leitura

"O telefone, perdão, o búzio desligou e eu não quero nem recordar o que foi a espera lenta e longa pelo findar de uma tarde loira que parecia não ter fim. Assim que o dia gastou todos os fiozinhos de luz, as estrelas começaram a tremeluzir no firmamento e eu corri para a praia, escalei o penedo do lobisomen e esperei.
A lua transformou o mar em prata, o penedo do lobisomen foi envolvido pelas águas à hora da maré cheia e então ouviu-se uma voz doce de sereia enfeitiçada: o búzio começou a vibrar, a fazer música e eu senti um não sei quê que me fez obedecer a todas as instruções.

- Coloca o búzio na boca e volta-te de costas para o mar - ordenou a voz.
Assim fiz e a voz continuou:
- Agora deixa-te cair, não tenhas medo, tu vais descer docemente, eu estou cá em baixo, de braços abertos, à tua espera.

Lancei-me confiadamente do penedo, eu sabia que não ia cair mas voar e voei como nos sonhos, voei muito de le-ve-zi-nho sem sentir o peso do corpo até que o manto fofo e fresco das águas me recolheu no ventre fundo. Quando as águas se fecharam sobre o meu corpo eu tive a primeira grande surpresa: com o búzio na boca eu respirava tão bem como se estivesse fora da água!
A segunda surpresa chegou logo a seguir na forma de uma baleia-azul:
- Olá, Félix - disse ela.
- Olá, baleia-azul.
- Vem comigo, fui encarregada de te transportar à cidade de Nacar.
- E como vou viajar? - quis saber.
- Tu és um passageiro especial, convidado de honra da cidade, entra para o meu salão de luxo - convidou ela." 

O Búzio de Nacar / Carlos Correia; il. Henrique Cayatte. Alfragide: Caminho, 1986.
Imagem: Copyright -  Evgeniia Zagreeva

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Minutos de leitura

 

"Da ideia à prática foi um salto de pulguinha velha. Arranjei uma prancha de madeira e toc, toc, toc, toca o búzio com jeito e força na esperança de ver surgir o habitante da concha, ou o que quer que fosse.
Nada aconteceu. O búzio parecia desoladoramente vazio.

-Ah, sim?! Então ele é isso? Tu não tebs nada lá dentro? Já vais ver o que te faço...
Furioso, fui buscar um martelão e preparava-me para escavacar a concha quando algo extraordinariamente aconteceu.
A princípio fiquei desorientado. Pensei na campainha da porta de entrada, no telefone, mas não podia ser, na minha casa não há telefone e a campainha da porta não funciona.

"Trrriiiim!»

Não havia dúvida, o som vinha de dentro do búzio. À força de tanto beliscar a perna para me certificar de que não estava a sonhar até fiquei com uma negra azulada.

"Trrriiiim!»

- Está lá, quem fala?
- Daqui é Bilal, guarda-mor e cronista da cidade de Nacar.
Fiquei tão assarpantado que até me esqueci de que estava a falar ao telefone através de um... búzio!

- Eu não conheço essa cidade, Sr. Bilal. Pode indicar-me a sua situação no mapa?
Recordo que nesse momento a voz hesitou, houve um momento de silêncio, após o que acrescentou:

- Nacar é uma cidade situada algures no mar profundo.
- Cidade?!... Mar profundo? Não posso acreditar?

Então a voz tornou-se mais segura e proferiu palavras que nunca mais esqueci:
- Se quiseres desvendar os segredos de Nacar vai hoje à noite à praia, trepa ao penedo do lobisomen e quando a lua cheia transformar o mar em prata algo irá acontecer. Não te esqueças de levar o búzio.
'Click!'"

O Búzio de Nacar / Carlos Correia; il. Henrique Cayatte. Alfragide: Caminho, 1986.
Imagem: Copyright: sem identificação na web

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Minutos de leitura


"Atravessaram o Mar dos Sargaços e viram peixes voadores.
E viram as grandes baleias que atiram repuxos de água para o céu e viram os grandes vapores que deixam atrás de si colunas de fumo suspensas no ar. E viram os icebergues majestosos e brancos na solidão do oceano. E nadaram ao lado dos veleiros que corriam velozes esticados no vento. E os marinheiros gritavam de espanto quando viam um rapaz agarrado à cauda dum golfinho. Mas eles mergulhavam e desciam ao fundo do mar para não serem pescados. Aí estavam os antigos navios naufragados com os seus cofres carregados de oiro e os seus mastros quebrados cobertos de anémonas e conchas.
Depois de nadarem sessenta dias e sessentas noites chegaram a uma ilha rodeada de corais. O golfinho deu a volta à ilha e por fim parou em frente duma gruta e disse:
– É aqui; entra na gruta e encontrarás a Menina do Mar.
– Adeus, adeus, golfinho. Obrigado, obrigado.
A gruta era toda de coral e o seu chão era de areia branca e fina. Tinha em frente um jardim de anémonas azuis. O rapaz entrou na gruta e espreitou. A menina, o polvo, o caranguejo e o peixe estavam a brincar com conchinhas. Estavam quietos, tristes e calados. De vez em quando a menina suspirava.
– Estou aqui! Cheguei! Sou eu! – gritou o rapaz. (…)
Então a Menina do Mar sentou-se no ombro do rapaz e disse:
– Estou tão feliz, tão feliz, tão feliz! Pensei que nunca mais te ia ver. Sem ti o mar, apesar de todas as suas anémonas, parecia triste e vazio. E eu passava os dias inteiros a suspirar. E não sabia o que havia de fazer. Até que um dia o Rei do Mar deu uma grande festa. Convidou muitas baleias, muitos tubarões e muitos peixes importantes. E mandou-me ir ao palácio para eu dançar na festa. No fim do banquete chegou a altura da minha dança e eu entrei na gruta onde o rei do Mar estava com os seus convidados, sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos. Então os búzios começaram a cantar uma cantiga antiquíssima, que foi inventada no princípio do Mundo. (…)
Então o Rei do Mar teve pena da minha tristeza e teve pena de ver uma bailarina que já não sabia dançar. (…)
No dia seguinte de manhã eu voltei ao palácio. E o Rei do Mar sentou-me no seu ombro e subiu comigo à tona das águas. Chamou uma gaivota, deu-lhe o frasco com o filtro de anémonas e mandou-a ir à tua procura. E foi assim que eu consegui que tu voltasses. (…)
– Agora a tua terra é o mar – disse a Menina do Mar.
E foram os cinco através de florestas [A menina do Mar, o rapaz, o polvo, o peixe e o caranguejo], areais e grutas.
No dia seguinte houve uma festa no palácio do Rei. A Menina do Mar dançou toda a noite e as baleias, os tubarões, as tartarugas e todos os peixes diziam:
– Nunca a vimos dançar tão bem.
E o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos e o seu manto de púrpura flutuava nas águas.
A Menina do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Fernanda Fragateiro. Porto : Porto Editora, 2012. 
Imagem: Copyright – Fernanda Fragateiro

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Minutos de leitura

 

O caminho entre a praia e a casa foi percorrido com alguma pressa. Ansiosos, os meus dedos afagavam aquele objecto misterioso que não obedecia à lei fundamental de todo o búzio digno desse nome: trazer gravado dentro de si o marulhar das ondas para que as pessoas possam recordar o ruído do mar, mesmo quando estão longe dele.
Assim que cheguei a casa fechei-me no meu quarto e dispus-me a observar o búzio com toda a atenção: ele recordava vagamente um pião, quer porque uma das pontas terminava num bico aguçado, quer porque era bojudo e reboludinho. Se não fosse aquela boca tão aberta, rasgada na bochecha redonda, quase estava tentado a enrolar-lhe uma corda à cintura e a atirá-lo para o chão só para ver se ele rodopiava. Mas não. Acabei por não arriscar a fazer isso porque receava partir-lhe o bico. Uma vez mais colei o ouvido à boca do búzio mas ele continuou calado. 
Difícil. difícil, foi espreitar lá para dentro, para o fundinho da concha. Tentei todas as posições. todas as iluminações, todas as perspetivas, sentei-me, fiz o pino, deitei-me, andei de gatas e nada, não vi nada, o máximo que consegui topar foi qualquer coisa escurinha no dobrar da primeira contracurva.
- Já sei! Vou imitar os crescidos a comer búzios na cervejaria!"

O Búzio de Nacar / Carlos Correia; il. Henrique Cayatte. Alfragide: Caminho, 1986.
Imagem: Copyright: wattpad

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Minutos de leitura

"Passear à beira-mar pela tardinha do sol é dos gostos da vida.

Eu não sei se é a hora, ou será talvez o mar, ou as cores, ou o calor meigo-macio a beijar a flor da água.Sei que é bom andar assim, pé descalço a patinhar lagos de água cristalina, mundos que surgem e somem na areia maciinha, tapetes de veludo loiro com desenhos em relevo de formas bem caprichosas.

NUm desses lagos que a maré formou ao fugir lá para o fundo, para o mais fundinho do mar, encontrei um búzio. Estava semienterrado na areia e ao retirá-lo da água vi claramente visto um vulto que saltou do búzio e - flop! - caiu, no lago, formou um pequeno redemoinho e sumiu.

- Pode lá ser! Um vulto a saltar de dentro de um búzio! Que excesso de imaginação...

Mirei e remirei o búzio, tentei espreitar o seu interior, mas todas aquelas curvas despistaram-me o olhar. Depois fiz como toda a a gente, colei o búzio ao ouvido e disse para mim mesmo:

- Encosto o búzio oa ouvido direito, o mar está do lado esquerdo, portanto talvez consiga ouvir o barulho das ondas em estereofonia. Oh, amarga desilusão!.... Se as ondas marulhavam normalmente, o búzio, esse, permaneceu mudo, não soltou sequer um pio! Caso mais esquisito.... Um búzio acabadinho de sair da água do mar e que não aprendeu a falar a linguagem das ondas... Estava cada vez mais intrigado. Pelo sim, pelo não, resolvi guardá-lo no bolso e regressei imediatamente a casa."

O Búzio de Nacar / Carlos Correia; il. Henrique Cayatte. Alfragide: Caminho, 1986
Imagem: Copyright - Dumarsismck

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Minutos de leitura

 "– Tenho tanta curiosidade da terra – disse a menina -; amanhã quando aqui vieres, traz-me uma coisa da terra.
    E assim ficou combinado.
    No dia seguinte, logo de manhã, o rapaz foi ao seu jardim e colheu uma rosa encarnada muito perfumada. Foi para a praia e procurou o lugar da véspera.
    – Bom dia, bom dia, bom dia – disseram a menina, o polvo, o caranguejo e o peixe.
    – Bom dia – disse o rapaz. E ajoelhou-se na água, em frente da Menina do Mar.
    – Trago-te aqui uma flor da terra – disse -; chama-se rosa.
    – É linda, é linda! – disse a Menina do Mar, dando palmas de alegria e correndo e saltando em roda da rosa.
    – Respira o seu cheiro para veres como é perfumada.
    A menina pôs a sua cabeça dentro do cálice da rosa e respirou longamente.
    Depois levantou a cabeça e disse suspirando:
   – É um perfume maravilhoso. No mar não há nenhum perfume assim. Mas estou tonta e um bocadinho triste. As coisas da terra são esquisitas. São diferentes das coisas do mar. No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas.
    – Isso é por causa da saudade – disse o rapaz.
    – Mas o que é a saudade? – perguntou a Menina do Mar.
    – A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora.
    – Ai! – suspirou a Menina do Mar olhando para a terra. – Porque é que me mostraste a rosa? Estou com vontade de chorar.
    O rapaz atirou a rosa e disse:
    – Esquece-te da rosa e vamos brincar.
    E foram os cinco, o rapaz, a menina, o polvo, o caranguejo e o peixe pelos carreirinhos de água, rindo e brincando durante a manhã toda.
    Até que a maré começou a subir e o rapaz teve que se ir embora.
    No dia seguinte, de manhã, tornaram a encontrar-se todos no sítio do costume.
    – Bom dia – disse a menina. – O que é que me trouxeste hoje?
    O rapaz pegou na Menina do Mar, sentou-se numa rocha e ajoelhou-se a seu lado.
    – Trouxe-te isto – disse. – É uma caixa de fósforos.
    – Não é lá muito bonito – disse a menina.
    – Não; mas tem lá dentro uma coisa maravilhosa, linda e alegre que se chama fogo. Vais ver.
    E o rapaz abriu a caixa e acendeu um fósforo.
    A menina deu palmas de alegria e pediu para tocar no fogo.
    – Isso – disse o rapaz – é impossível. O fogo é alegre, mas queima.
    – É um sol pequenino – disse a Menina do Mar.
    – Sim – disse o rapaz – mas não se lhe pode tocar.
    E o rapaz soprou o fósforo e o fogo apagou-se.
    – Tu és bruxo – disse a menina -, sopras nas coisas e elas desaparecem.
    – Não sou bruxo. O fogo é assim. Enquanto é pequeno qualquer sopro o apaga. Mas depois de crescido pode devorar florestas e cidades.
    – Então o fogo é pior que a Raia? – perguntou a menina.
    – É conforme. Enquanto o fogo é pequeno e tem juízo é o maior amigo do homem: aquece-o no inverno, cozinha-lhe a comida, alumia-o durante a noite. Mas quando o fogo cresce de mais, zanga-se, enlouquece e fica mais ávido, mais cruel e mais perigoso do que todos os animais ferozes.
    – As coisas da terra são esquisitas e diferentes – disse a Menina do Mar. – Conta-me mais coisas da terra.
    Então sentaram-se os dois dentro de água e o rapaz contou-lhe como era a sua casa e o seu jardim e como eram as cidades e os campos, as florestas e as estradas.
    – Ah!, como eu gostava de ver isso tudo – disse a menina cheia de curiosidade."

A Menina do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Fernanda Fragateiro. Porto : Porto Editora, 2012. 
Imagem: Copyright – Fernanda Fragateiro