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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Livros do mês - 2.º e 3.º Ciclos (I) - novembro

"Entre a casa e a cidade longínqua estendem-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem também os lírios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias.

Dentro da casa o mar ressoa como no interior de i«um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir da louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa - é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada coisa é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada.

 

"A casa do mar", in Histórias da terra e do mar. Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Figueirinhas,2006

Imagem: Copyright - John Constable, Spring-clouds.


Livros do mês - 1.º Ciclo (I) - novembro

Era uma vez – em tempos muito antigos, no arquipélago do Japão – uma árvore enorme que crescia numa ilha muito pequenina.

Os japoneses têm um grande amor e um grande respeito pela Natureza e tratam todas as árvores, flores, arbustos e musgos com o maior cuidado e com um constante carinho.
Assim, o povo dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por possuir uma árvore tão grande e tão bela: é que em nenhuma outra ilha do Japão, nem nas maiores, existia outra árvore igual. Até os viajantes que por ali passavam diziam que mesmo na Coreia e na China nunca tinham visto uma árvore tão alta, com a copa tão frondosa e bem formada.
E, nas tardes de Verão, as pessoas vinham sentar-se debaixo da larga sombra e admiravam a grossura rugosa e bela do tronco, maravilhavam-se com a leve frescura da sombra, o suspirar da brisa entre as folhagens perfumadas.
Assim foi durante várias gerações.
Mas, com o passar do tempo, surgiu um problema terrível, e por mais que todos meditassem e discutissem, ninguém era capaz de arranjar uma boa solução.
Porque, ao longo dos anos, a árvore tinha crescido tanto, os seus ramos tinham-se tornado tão compridos, a sua folhagem tão espessa e a sua copa tão larga que, durante o dia, metade da ilha ficava sempre à sombra.
De maneira que metade das casas, das ruas, das hortas e dos jardins nunca apanhava sol.
E, na metade ensombrada, as casas estavam a ficar húmidas, as ruas tinham-se tornado tristes, as hortas já não davam legumes, os jardins já não davam flor. E a gente que ali morava andava sempre pálida e constipada.
E, à medida que a sombra da árvore crescia, crescia também a perturbação.
As pessoas gemiam:
— Que havemos de fazer? Que havemos de fazer? (…)

A árvore / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Teresa Lima. - 16ª ed. - Porto : Porto Editora, 2015. - 34, [2] p. : il. ; 23 cm. - ISBN 978-972-0-72629-2

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Livros do mês - 2.º / 3.º Ciclos (IV) - outubro


"O Cabedelo para mim era o deserto, cheio de prestígio e de aventuras.... Era no Cabedelo  que tomávamos os melhores banhos, deitados na areia, deixando vir sobre nós a vaga num rodilhão de algas e espuma. Andar um momento envolvido na crista da onda, ser atirado numa sufocação sobre a areia, correr de novo para o mar, direito à vaga que se encapela lá no fundo, formando concha, outra vez aturdido e impregnado de uma vida nova; e depois procurar, a escorrer, um côncavo quentinho de areia que nos sirva de abrigo contra o vento e secar-se a gente naquele lençol doirado - é uma das coisas boas da terra. E outro prazer simples e extraordinário é ir descalço pelo grande areal fora com os pés na água. A onda vem, espraia-se, molha-nos e salpica-nos de espuma. Calca-se esse mosto branco e salgado que gela e vivifica, e caminha-se sempre ao lado dos sucessivos rolos que se despedaçam na areia. A onda vem, cresce e, antes de se despedaçar em espuma, o sol veste-a de uma armadura de aço a reluzir. Há-as de um esverdeado de alga morta, há-as que se derretem e fundem em torvelinhos de branco e há-as que recuam e se enovelam noutras ondas prestes a desabar. Mas há umas, esplêndidas, que vi em Mira, ao pôr do sol, quando o vasto areal fica todo ensanguentado. A onda forma-se e corre por aquela magnífica estrada que vem do Sol até à praia, ganha primeiro reflexos doirados na crista e depois, quando se estira pelo areal molhado, fica cor do vinho nos lagares.
Outras vezes percorríamos o Cabedelo a pé como exploradores. Há lá canaviais, poças de água azul e polida, rochas luzidias por onde escorregávamos, peixes nascidos que procuram o refúgio das pedras e a água aquecida para se acabarem de criar. caranguejos nas fisgas e, na vazante da maré, grandes lagos que navegávamos ao acaso, deixando o barco ir à toa e encalhar no areal...
O Cabedelo produz, além das canas, uma espécie de cardo, plantas rasteiras e humildes de folha dura, que dão uma flor pequenina e vermelha, outras que parecem os chapotos que nescem nos velhos muros, e ainda outras mais pobres com a folha em escama pela haste acima. Estes  vastos areais, revestidos às vezes de cabelo de oiro que seguram as dunas, estão todo o ano a concentra-se para em Agosto sair daquela secura e do amargo do sal, um lírio branco que os  perfuma, dura algumas horas e logo desaparece.

Os Pescadores / Raul Brandão- Porto: Porto Editora, 2010
Imagem: Copyright - Benji Davies

Livros do mês - 1.º Ciclo (III) - outubro


"Passaram dias e dias. O rapaz voltou muitas vezes às rochas, mas nunca mais viu a menina nem os seus três amigos. Era como se tudo tivesse sido um sonho.

Até que chegou o Inverno. O tempo estava frio, o mar cinzento e chovia quase todos os dias. E numa manhã de nevoeiro o rapaz sentou-se na praia a pensar na Menina do Mar.
E enquanto assim estava viu uma gaivota que vinha do mar alto com uma coisa no bico. Era uma coisa brilhante que reflectia a luz e o rapaz pensou que deveria ser um peixe. Mas a gaivota chegou junto dele, deu uma volta no ar e deixou cair a coisa na areia.
O rapaz apanhou-a e viu que era um frasco cheio duma água muito clara e luminosa.
– Bom dia, bom dia – disse a gaivota.
– Bom dia, bom dia – respondeu o rapaz. – Donde é que vens e porque é que me dás este frasco?
– Venho da parte da Menina do Mar – disse a gaivota. – Ela manda-te dizer que já sabe o que é a saudade. E pediu-me para te perguntar se queres ir ter com ela ao fundo do mar.
– Quero, quero – disse o rapaz. – Mas como é que eu hei-de ir ao fundo do mar sem me afogar?
– O frasco que te dei tem dentro suco de anémonas e suco de plantas mágicas. Se beberes agora este filtro passarás a ser como a Menina do Mar. Poderás viver dentro de água como os peixes e fora da água como os homens.
– Vou beber já – disse o rapaz.
E bebeu o filtro.
Então viu tudo à sua roda tornar-se mais vivo e mais brilhante.
Sentiu-se alegre, feliz, contente como um peixe. Era como se alguma coisa nos seus movimentos tivesse ficado mais livre, mais forte, mais fresca e mais leve.
– Ali no mar – disse a gaivota – está um golfinho à tua espera para te ensinar o caminho.
O rapaz olhou e viu um grande golfinho preto e brilhante dando saltos atrás da arrebentação das ondas. Então disse:
– Adeus, adeus, gaivota. Obrigado, obrigado.
E correu paras as ondas e nadou até ao golfinho.
– Agarra-te à minha cauda – disse o golfinho.
E foram os dois pelo mar fora.
Nadaram muitos dias e muitas noites através de calmarias e tempestades."

A Menina do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Fernanda Fragateiro. Porto : Porto Editora, 2012. Imagem: Copyright – Fernanda Fragateiro

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Livros do mês - 2.º / 3.º Ciclos (III) - outubro

 

Vai cair a tarde. O azul desmaia sobre o areal doirado. Mais pó esbranquiçado lá no fundo, par o norte - névoa ou luz que nasce, não sei bem; para o sul, o morro transparente que entra pelo mar... Três grandes barcos decorativos estão num grupo, de proa à água, que a toda a hora esmorece. Somem-se as casas denegridas, a agitação e os homens; só o barco se me afigura cada vez maior, sobre a vaga imensa do areal, sob o resplendor imaculado do Sol, enchendo o céu e a terra com as suas grandes linhas decorativas. À primeira vista parece uma coisa teatral, prestes a desconjuntar-se, só cenário e mais nada, com quatro patas desajeitadas de bicho, sem o alicerce da quilha a sustentá-lo, impróprio para o mar e para a terra - obra de lavradores que resolveram um dia ir à sardinha. Os quatro remos pesadíssimos, com uma grande parte mais grossa e reforçada, que se chama cágado, são coevos do alfange, e estes bicos aguçados, que tão bem ficam no areal e no céu, não têm solidez nenhuma. Na realidade, um barco destes, que parece inútil, é um produto de engenho secular. Como não há porto nem abrigo e a embarcação tem de passar logo do areal para a onda que escachoa, atravessando a arrebentação para sair ao largo ou para regressar à terra, era necessário oferecer à onda a menor resistência e saltar-lhe no dorso: - por isso ergueu a proa. E como a dança das ondas se sucede durante alguns minutos, era forçoso também que, mal assentasse na água, lhe andasse ao de cima: - e a popa fugiu-lhe para o céu. O barco tem exactamente o feitio côncavo do espaço que vai de vaga em vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas extremidades.

Os Pescadores / Raul Brandão- Porto: Porto Editora, 2010
Imagem: Copyright - Benji Davies

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Livros do mês - 2.º / 3.º Ciclos (II) - outubro

 "Sol e azul e depois névoa. Às vezes começa em Agosto, outras em Setembro. Uma barra ao longe anuncia-a, uma barra que cresce em fumarada sobre a terra, ou que se dispersa correndo para o sul, em labaredas sobre o mar esverdeado. Há outras névoas no Verão que se descerram lentamente como cortinas, ficando o panorama límpido como uma aguarela acabada de pintar. Outras têm léguas de extensão e levam dias a passar. E o mar exala um cheiro mais vivo quando o nevoeiro parece dissolver-se, para logo voltar mais denso e compacto. Às vezes, vê-se entre a neblina um ponto da costa cheio de luz, um rasgão no mar, uma única pedra iluminada entre o céu infinito e o mar infinito.


Tenho visto também umas névoas esbranquiçadas que ficam lá par muito fundo embebendo-se de luz. Névoa, um pouco de sol e brancura, tudo embrulhado. A onda vem de longe, irrompe da névoa, e só se vêem os grandes rolos brancos revolvidos de espuma muito ao perto quando se despedaçam. Em Sagres assisti a um nevoeiro extraordinário. Aparecem primeiro uns flocos no céu, e a luz tornou-se logo mais azul, pegando a zul à pele, molhando de azul as mãos estendidas. Depois a névoa, que no Verão dura segundos, doirou e subiu ao ar, tornando o horizonte mais ilimitado e fantasmagórico...

As névoas anunciam o Inverno. Começam a vir os nevoeiros compactos, que se metem pelas narinas e cheiram a mar e a fumo. Há-os que têm léguas de espessura e levam dias a passar, cortes desordenados de fantasmas enchendo todo o horizonte. O sino tange. Não se vê palmo adiante do nariz. Lá fora os barcos, como cegos, só se guiam pelo som. O mar é um misterioso fantasma que os envolve. Cerração cada vez mais mole e espessa...

Só a voz se ouve,  e o lamento parece vir de longe e de mais fundo. Às vezes adelgaça-se um pouco na costa, e grandes rolos de fumaceira crescem do mar sobre a terra. É o Inverno que vem aí. A voz imensa tem já plangências de dor - desabar infinito de lágrimas. De sul para o norte as nuvens correm sempre, cortes sobre cortes que saem das profundas e avançam, deslizam sobre as águas sem ruído, enchendo o céu de farrapos enormes, de fantasmas criados naquele mar salgado e que se seguem em tropel num galope monstruoso para uma grande batalha desconhecida. E de quando em quando o sino chama, chama sempre pelos homens perdidos na névoa espessa que leva dias a passar.


Os Pescadores / Raul Brandão. Porto: Porto Editora, 2010
Imagem: Copyright - Elena Gabbasova

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Livros do mês - 1.º Ciclo (II) - outubro

Em Setembro veio o equinócio. Vieram marés vivas, ventanias, nevoeiros, chuvas, temporais. As marés altas varriam a praia e subiam até à duna. Certa noite, as ondas gritaram tanto, uivaram tanto, bateram e quebraram-se com tanta força na praia, que, no seu quarto caiado da casa branca, o rapazinho esteve até altas horas sem dormir. As portadas das janelas batiam. As madeiras do chão estalavam como madeiras de mastros. Parecia que as ondas iam cercar a casa e que o mar ia devorar o Mundo. E o rapazito pensava que lá fora, na escuridão da noite, se tratava uma imensa batalha em que o mar, o céu e o vento se combatiam. Mas, por fim, cansado de escutar, adormeceu embalado pelo temporal.
De manhã, quando acordou, tudo estava calmo. A batalha tinha acabado. Já não se ouviam gemidos do vento nem gritos do mar, mas só um doce murmúrio de ondas pequeninas. E o rapazito saltou da cama, foi à janela e viu uma manhã linda de sol brilhante, céu azul e mar azul. Estava maré vaza. Pôs o fato de banho e foi para a praia a correr. Tudo estava tão claro e sossegado que ele pensou que o temporal da véspera tinha sido um sonho.
Mas não tinha sido um sonho. A praia estava coberta de espumas deixadas pelas ondas da tempestade. Eram fileiras e fileiras de espuma que tremiam à menor aragem. Pareciam castelos fantásticos, brancos mas cheios de reflexos de mil cores. O rapaz quis tocar-lhes, mas mal punha neles as suas mãos os castelos trémulos desfaziam-se.

A menina do mar / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Fernanda Fragateiro. Porto: Porto Editora, 2012. 
Imagem: Copyright - Eugène Boudin (1824-1898) - Scène à la plage

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Livros do mês - 2.º / 3.º Ciclos (I) - outubro

Quando regresso do mar, venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos - seis linhas - um tipo - uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadrinhos ao ar livre, são melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-se e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto at+e mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. - Eu também nunca mais a esqueci...

10 de Agosto - 1921

 Esta nossa terra portuguesa vai pela costa fora sempre de braços abertos para o mar, estreitando-o amorosamente contra si. Começa em Caminha até ao forte de Ãncora - de Âncora ao extremo do monte da Gelfa, e daí ao farol de Montedor, em três largas reentrâncias, que têm como pano de fundo a cadeia azulada dos montes, de onde emerge um ou outro cone transparente... Todas as povoações são viradas para o mar. O sol doira uma janela, uma eira, um espigueiro, o campo de milho alimentado a sargaço que tem os pés na água. E o biombo cor de lousa desenrola-se ao lado do comboio...

31 de Agosto

Deixo esta manhã Viana e os incaracterísticos pescadores da Ribeira e sigo pelo pinhal de Darque, Anha, S. Romão de Neiva, para Esposende, com o rio à esquerda por terras vermelhas, donde irrompem alguns tufos de pinheiros majestosos como templos. Ao longe a serra de Arga e as torres de S. Silvestre... Ficam-me na retina uma igreja branca, a de Darque, recortada ao céu, e a verde solidão dos pinheirais, que associo sempre à ideia do mar largo. Pela estrada incaracterística acompanho carreadas de sargaço e de patelo, até que chego a Belinho, onde o grande poeta exilado bate as portas na cara do mar que detesta - depois de atravessar um fio de água, com o morro selvático do Castelo de Neiva em frente. 

 De Belinho para S. Bartolomeu já me envolve a poalha da tarde e depois uma luz violenta nas Marinhas. Tenho de um lado os montes escuros e do outro o mar verde com o resplendor do céu em cima. À beira da estrada branca de poeira, movem-se ainda - trabalham noite e dia - alguns grupos de moinhos. E esta engenhoca seduz-me: anima a paisagem e tem alguma coisa de navio e de brinquedo de criança.

 Faz-se tarde. No fundo mais negro, as casas, mais pálidas, embranquecem: só o milho fica loiro e o céu fica doirado. (...) Esposende, terra de beira-mar, donde não consigo ver o mar, terra de tristes pescadores. As redes de arrasto deram cabo do peixe, matando a criação. Só resta uma catraia para a pescada, alguns batéis para a raia, com redes de malha muito larga, e diferentes barquinhos para a pesca do rio, que dá o sável, a tainha e o robalo na vazante, e a solha que se fisga com a petada nos fundos de areia mais escura.

 Os Pescadores / Raul Brandão. Porto: Porto Editora, 2010

Imagem: Copyright - praia de Belinho: C.M. de Esposende

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Livros do mês - 1.º Ciclo (I) - outubro

 

Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas 
E o teu silêncio intacto em que dorme 
O milagre das coisas que eram minhas.

Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar.
Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.
Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia.
Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até quebrarem na areia com um barulho de palmas. Mas na maré vaza as rochas apareciam cobertas de limos, de búzios, de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se “Vai ali um peixe” e já não se via nada. Mas as vinagreiras passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito apressado.
O rapazinho da casa branca adorava as rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro de maresia, a frescura transparente das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que baloiçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz.

A Menina do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Fernanda Fragateiro. – Porto : Porto Editora, cop. 2012. – 38, [2] p. : il. ; 23 cm. – ISBN 978-972-0-72621-6

Livros do mês

I
niciamos este mês e nesta semana o destaque dos livros que semanalmente serão destacados de formas diversas. A leitura, a sua promoção e a transformação que as palavras nos podem conceder são uma das mais importantes funções que uma biblioteca deve promover. Em cada mês será feito um destaque para o 1.º Ciclo e outro para o 2.º e 3.º Ciclos. Este destaque procura integrar a temática  escolhida, a literacia do mar e dos oceanos. O autor do mês também estará, sempre que possível relacionado com essa temática. Estas escolhas poderão ser complementadas com algumas das ideias desenvolvidas no planeamento mensal.

 Os livros escolhidos obedecem à ideia de divulgação de algo que nos pode fazer enriquecer o que somos, o que vivemos, o que ainda desejamos construir. Livros esses que possam realizar essa viagem e que nos permita chegar ao plano elevado que António Lobo Antunes exprimiu de forma sábia, "ilhas eternas de fraternidade". Embora tendo nós na ideia, um conjunto de opções a destacar estamos disponíveis para alterar o que for relevante para o próprio currículo escolar. A lista mensal será enviada esta semana através de Informação genérica..

Os livros em destaque serão alvo de uma pequena apresentação no blogue e estarão em suporte físico em alguns espaços de algumas bibliotecas. Esses livros integrarão alguns dos espaços da difusão da informação que vamos continuar a implementar junto de todos. Em alguns casos, quando possível existirá a construção de um Boletim Bibliográfico que apresentaremos aos docentes e que integrarão alguns destes destaques. Foi criado o ano passado um mural de leituras e a ideia a desenvolver passa também para que os alunos possam introduzir os seus comentários, sobre estes livros, ou os que lerem na modalidade de leitura autónoma. 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Patagónia Express


Os índios da Patagónia mantiveram uma longa relação com a quila e não só pela bondade da sua utilização como igualmente pelas suas virtudes de trágico e infalível oráculo. Sempre que floresceu a quila advieram tempos de dor e desolação. A sua flor é de uma intensa e premonitória cor vermelha, e os Tehuelches calculavam a sua idade consoante o número de vezes que a tinham visto florescer. Os que foram testemunhos daquele portenho mais de duas vezes tinham certamente muito que contar ao calor das fogueiras.

    Hoje restam poucos Tehuelches e Mapuches na Patagónia. São sobreviventes que, agarrados à sua dignidade, decidiram não ser maisum simpático pormenor étnico para diversão dos turistas, e vivem e excercem uma espantosa cultura de resistência e de memória de ambos os alados da cordilheira dos Andes. 

As restantes etnias sucumbiram perante as regras de um processo cujos frutos ninguém é capaz de definir, e delas mal persistem as recordações ou testemunhos reunidos por alguns estudiosos que realizam o seu trabalho vigiados pelos preconceitos e a suspeita. É muito difícil escrever a história dos vencidos, mas a quila continua lá, crescendo nos desfiladeiros, unida pelos invernos ao errante destino dos gaúchos pobres.

Quando o mês de março encurta os dias, as abetardas cruzam o céu fugindo aos rigores invernais e o vento amontoa as nuvens nos vales, então os gaúchos reúnem os rebanhos de reses e empreendem a subida em direcção à cordilheira, para a estação do inverno. Não são muitos os bovinos nessa terra débil onde primeiro pastaram os guanacos e que mais tarde foi pisada por milhões de ovelhas na época dourada da lã. 

Patagónia Express / Luís Sepúlveda. Porto: Porto Editora.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Livros do mês


Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, "Diário XIII"

Antologia poética / Miguel Torga. - 9ª ed. - Alfragide : Dom Quixote, 2019. - 485 p. ; 24 cm. - ISBN 978-972-20-5400-3