segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Patagónia Express


Os índios da Patagónia mantiveram uma longa relação com a quila e não só pela bondade da sua utilização como igualmente pelas suas virtudes de trágico e infalível oráculo. Sempre que floresceu a quila advieram tempos de dor e desolação. A sua flor é de uma intensa e premonitória cor vermelha, e os Tehuelches calculavam a sua idade consoante o número de vezes que a tinham visto florescer. Os que foram testemunhos daquele portenho mais de duas vezes tinham certamente muito que contar ao calor das fogueiras.

    Hoje restam poucos Tehuelches e Mapuches na Patagónia. São sobreviventes que, agarrados à sua dignidade, decidiram não ser maisum simpático pormenor étnico para diversão dos turistas, e vivem e excercem uma espantosa cultura de resistência e de memória de ambos os alados da cordilheira dos Andes. 

As restantes etnias sucumbiram perante as regras de um processo cujos frutos ninguém é capaz de definir, e delas mal persistem as recordações ou testemunhos reunidos por alguns estudiosos que realizam o seu trabalho vigiados pelos preconceitos e a suspeita. É muito difícil escrever a história dos vencidos, mas a quila continua lá, crescendo nos desfiladeiros, unida pelos invernos ao errante destino dos gaúchos pobres.

Quando o mês de março encurta os dias, as abetardas cruzam o céu fugindo aos rigores invernais e o vento amontoa as nuvens nos vales, então os gaúchos reúnem os rebanhos de reses e empreendem a subida em direcção à cordilheira, para a estação do inverno. Não são muitos os bovinos nessa terra débil onde primeiro pastaram os guanacos e que mais tarde foi pisada por milhões de ovelhas na época dourada da lã. 

Patagónia Express / Luís Sepúlveda. Porto: Porto Editora.

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