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terça-feira, 21 de março de 2023

Dia mundial da poesia

 


"Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura."

"Depois do Inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores."

"Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás as mãos de quem te espera."


"Flores", "Primavera", "Glória" de Sophia; Miguel Torga e Eugénio de Andrade

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Um mês com ... Sophia


"O vento sopra contra
As janelas fechadas

Na planície imensa
Na planície absorta
Na planície que está morta,

E os cabelos do ar ondulam loucos
Tão compridos que dão a volta ao mundo.

Sento-me ao lado das coisas
E bordo toda a noite a minha vida

Aqueles dias tecidos
Que tinham um ar de fantasia
Quando vieram brincar dentro de mim.

E o vento contra as janelas
Faz-me pensar que eu talvez seja um pássaro."

"O Vento", in Obra Poética I / Sophia. Lisboa: Caminho, 1999.


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Um mês com... Sophia

"Desvendar as sombras"

                                                                                                                                                             Sophia de Mello Breyner Andresen é o nome em destaque em novembro nas Bibliotecas. Sophia, nome maior das letras e da cidadania fez da sua vida um encantamento por esse amor antigo e futuro de todas  as ideias, concedeu-nos as palavras da pura claridade, o dia inicial criado do caos para nos harmonizar com o real. Sophia é um nome, uma paisagem, uma forma de olhar  que tem inspirado sucessivas gerações a descobrir no real, uma forma de divindade por onde as suas palavras respiram assombradas  pela sua essência de simplicidade. Deu-nos uma respiração de coral e nela vemos a tão difícil, mas tão necessária, dimensão da autenticidade nos gestos e nas palavras.

As palavras são, em Sophia, não uma descrição planeada ou imaginada do real, mas sim a descrição do olhar, o concreto onde sobressai a nossa dimensão humana. Com a sua arte poética e narrativa, temos uma escrita muito preocupada com os limites da existência humana, de onde emerge em simplicidade um encontro com a Natureza e em especial com o mar. Sophia deu-nos uma obra literária marcada pela poesia, pelos contos, onde fez nascer um imaginário de conhecimento das  imagens  que nos levam ao real, à procura de uma essência do humano. 

Da sua obra, destacam-se a poesia, como forma primeira de uma expressão da palavra, na respiração do mundo, e os contos, em que muito do seu imaginário foi levado a crianças mais jovens. Na poesia, publicou diversos títulos, como No tempo dividido, CoralNavegaçõesIlhasO nome das coisas, onde o deslumbramento pela palavra, a extrema sensibilidade e clareza tentam encontrar campos e horizontes de felicidade, numa procura de uma dimensão humana que se afirma acima de qualquer tempo.  A obra de Sophia procurou ligar-nos ao real e à procura do que foram os elementos fundadores da nossa natureza humana.

A luz que ela nos deu é clara e transparente como as manhãs nascidas de um tempo novo, não numa dimensão política, da usura de títulos, mas a de uma nobreza feita da que procura dialogar consigo própria, a da manhã branca, onde a claridade emerge de um dia alvo, desenhado e vivido de possibilidades que o real nos concede. As suas palavras deram-nos uma estética do maravilhoso, de quem se espanta pelo assombro do mundo, pela sua beleza e injustiça, num compromisso autêntico, livre e sublime, com a respiração que nos pode fazer herdeiros da maior inteireza possível. 

Conduziu-nos pela maresia, falou-nos dessa primeira liberdade, correu com o vento para que nós também sentíssemos a questão inicial, o sopro vivo da palavra comprometida. Infelizmente, nós não a compreendemos e temos muitos exemplos desta destruição pelo valor da palavra, onde a construção de uma comunidade se vê isolada da sua substância mais vital. Resta-nos com ela absorver o seu maior legado. O coração e as palavras que são sempre novas todos os dias, pois elas procuram construir um equilíbrio. Aquele que se sobreponha aos labirintos e ao caos, desvendando as sombras que no real nos afastam da essência. Palavras, como instrumentos para podermos abordar os dias, reconquistando um real a esse caos, tantas vezes usado e criado por desleixo e falta de vontade humana. 

As suas palavras são uma permanente iluminação, por onde se busca a mais perfeita claridade. Sophia criou um reino, uma linguagem que se exprime na sua Poesia, como uma forma de tornar possível, de fazer nascer um real onde se fragmentam os nossos passos de sol nas ondas de azul. Os seus contos infantis e juvenis estão cheios desses valores que importa continuar a conhecer e a amar como um sinal de um divino em cada pessoa, em cada rosto. 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Um poema

“Promessa”
És tu a Primavera que eu esperava, 
A vida multiplicada e brilhante, 
Em que é pleno e perfeito cada instante.

“Nevoeiro”
A minha esperança mora 
no vento e nas sereias.
É o azul fantástico da aurora 
e o lírio das areias.



“IV”
Sonhei com lúcidos delírios
à luz de um puro amanhecer.
numa planície onde crescem lírios
e há regatos cantantes a correr.

Sophia 
Dia do Mar/Sophia de Mello Breyner Andresen ; pref. Gastão Cruz. – 1ª ed. – Porto : Assírio & Alvim, 2014. – 119, [8] p. ; 21 cm. – (Obras de Sophia de Mello Breyner Andresen). – ISBN 978-972-37-1746-4

(Fazemos viagens, idealizamos caminhos para ver nascer a possibilidade do real. A poesia de Sophia procura esse real deslumbrante e deu-nos em palavras as que nos podem iluminar para o azul, para a manhã que se ordena no significado do vento e das marés. Em abril, as suas palavra são ainda, como sempre de uma claridade livre.)

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O escritor do mês

 


"Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito da verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê a espantosa beleza do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo (...) somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser." (1)

É uma das grandes figuras da cultura europeia e mundial, do século passado e de todos. Nasceu no Porto a seis de Novembro de 1919, onde passou a sua infância. Mais tarde mudou-se para Lisboa, onde fez os seus estudos universitários entre 1936 e 1939. Publicou os seus primeiros poemas em 1940, nos Cadernos de Poesia. Foi uma defensora dos direitos civis dos presos políticos durante o Estado Novo.

A sua luz é clara e transparente como as manhãs nascidas de um tempo novo, não o da dimensão política, não o da pequena ambição pelo cargo, pela nomeação, pelo lucro rápido e incolor. Apenas e só a que procura dialogar consigo próprio, a da manhã branca, onde a claridade emerge de um dia alvo, desenhado e vivido das possibilidades que o real concede. As suas palavras deram-nos uma estética do maravilhoso, num compromisso autêntico, livre e sublime, com a respiração que nos faz ser herdeiros da maior inteireza.

Conduziu-nos pela maresia, falou-nos dessa primeira liberdade, correu com o vento para que também nós sentíssemos a questão inicial, o sopro da palavra comprometida. Nela encontramos um coração de nobreza e as suas palavras que são sempre novas todos os dias. 
Escreveu diversos livros de poesia que se encontram publicados autonomamente na sua obra poética. Podemos destacar Livro Sexto, Navegações, Coral, No Tempo Dividido ou O Nome das Coisas. Em 2011 para assinalar a exposição internacional que decorreu na BN foram juntos alguns textos não conhecidos e agrupada toda a sua poesia num volume imenso de palavras e descobertas.

Destacou-se ainda na escrita para crianças em livros como A Fada Oriana, O Rapaz de Bronze, A Árvore ou A Floresta. Traduziu autores diversos, como Shakespeare ou Eurípedes. Escreveu ensaios, da terra das casas brancas no azul do Mediterrâneo, de que tanto gostava. Recebeu ao longo da sua vida vários prémios, como o Prémio Camões 1999 ou o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana em 2003. 

Sophia, deu-nos uma escrita de grande beleza, preocupada com os limites da existência humana, onde encontramos a simplicidade e o encontro com a Natureza, em especial o mar. Influenciada pela cultura grega, por esse mar de casas brancas, onde o sonho, a descoberta de novos horizontes está sempre presente. 

Com Sophia encontramos o deslumbramento pela palavra, onde a sensibilidade e a pureza tenta encontrar campos e horizontes de felicidade. As musas do mundo grego que tanto a inspiraram deram-nos nas suas palavras uma nova dimensão para o homem. Com Sophia a palavra tem contornos de magia por onde a dimensão humana se afirma acima de qualquer tempo. Com Sophia encontramos um deslumbramento permanente:

" (...) mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais 
        Do fundo do mar
        Eu nasci há um instante." (2)
                                 
(1) Sophia, "Posfácio", In Livro Sexto / Sophia de Mello Breyner Andresen ; pref. Manuel Gusmão. - 1ª ed. Porto : Assírio & Alvim, 2013. - 113, [6] p. ; 21 cm. - (Obras de Sophia de Mello Breyner Andresen). ISBN 978-972-37-1783-9

(2) Sophia, "Gráfico", in Coral / Sophia de Mello Breyner Andresen ; pref. Gustavo Rubim. - 1ª ed. Porto : Assírio & Alvim, 2014. - 100, [11] p. ; 21 cm. - (Obras de Sophia de Mello Breyner Andresen). ISBN 978-972-37-1702-2

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Um poema - Em todos os jardins


"Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia.
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a sereia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como um beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens."

Sophia, “Em todos os jardins”, in Obra Poética. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.
Imagem: Copyright – m.ban.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O livro do mês - A menina do mar

 


"Casa branca em frente ao mar enorme,

Com o teu jardim de areia e flores marinhas 
E o teu silêncio intacto em que dorme 
O milagre das coisas que eram minhas.

Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar.
Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.
Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia.
Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até quebrarem na areia com um barulho de palmas. Mas na maré vaza as rochas apareciam cobertas de limos, de búzios, de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se “Vai ali um peixe” e já não se via nada. Mas as vinagreiras passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito apressado.
O rapazinho da casa branca adorava as rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro de maresia, a frescura transparente das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que baloiçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz."

A Menina do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Fernanda Fragateiro. – Porto : Porto Editora, cop. 2012. – 38, [2] p. : il. ; 23 cm. – ISBN 978-972-0-72621-6

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Minutos de leitura

     

Era uma vez uma fada chamada Oriana. Era uma fada boa e era muito bonita. Vivia livre, alegre e feliz dançando nos campos, nos montes, nos bosques, nos jardins e nas praias.
     Um dia a Rainha das Fadas chamou-a e disse-lhe:
     - Oriana, vem comigo.
     E voaram as duas por cima de planícies, lagos e montanhas. Até chegarem a um país onde havia uma grande floresta.
     - Oriana - disse a Rainha das Fadas -, entrego-te esta floresta. Todos os homens, animais e plantas que aqui vivem, de hoje em diante, ficam à tua guarda. Tu és a fada desta floresta. Promete-me que nunca a hás de abandonar. 
     Oriana disse:
     - Prometo.
     E daí em diante Oriana ficou a morar na floresta. De noite dormia dentro do tronco  de um carvalho. De manhã acordava muito cedo, acordava ainda antes das flores e dos pássaros. O seu relógio era o primeiro raio de Sol. Porque tinha muito que fazer. Na floresta todos precisavam dela. Era ela que prevenia os coelhos e os veados da chegada dos caçadores. Era ela que regava as flores com orvalho. Era ela que tomava conta dos onze filhos do moleiro. Era ele que libertava os pássaros que tinham caído nas ratoeiras.
     À noite, quando todos dormiam, Oriana ia para os prados dançar com as outras fadas. Ou então voava sozinha por cima da floresta e, abrindo as suas asas, ficava parada, suspensa no ar entre a terra e o céu. À roda da floresta havia campos e montanhas adormecidos e cheios de silêncio. Ao longe viam-se as luzes de uma cidade debruçada sobre o seu rio. De dia e vista de perto a cidade era escura, feia e triste. Mas à noite a cidade brilhava cheia de luzes verdes, roxas, amarelas, azuis, vermelhas e lilases, como se nela houvesse uma festa. Parecia feita de opalas, de rubis, de brilhantes, de esmeraldas e de safiras. 
     Passou um verão, passou um outono, passou um inverno. E chegou a primavera. E certa manhã de abril. Oriana acordou ainda mais cedo do que o costume. Mal o primeiro raio de Sol entrou na floresta, ela saiu de dentro do tronco do carvalho onde dormia. Respirou fundo os perfumes da madrugada e fez uns passos de dança. Depois penteou os cabelos com os dedos das mãos a fazerem de pente e lavou a cara com orvalho.
     - Que manhã tão bonita! - disse ela. - Nunca vi uma manhã tão azul, tão verde, tão fresca e tão doirada.
     E foi pela floresta fora dançando e dizendo bom dia às coisas.
 
A fada Oriana / Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Porto Editora, 2012. 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A noite de Natal (III)

A Estrela


Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas.
«Tenho medo», pensou ela.
Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada. 

(…)

O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais.
«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.
Mas continuou a caminhar.
Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca.
«Tenho frio», pensou Joana.
Mas continuou a caminhar.

À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até que ficou enorme.
Joana parou um instante no meio dos campos.
«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.
E olhava em todas as direções à procura de um rasto.
Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua frente não havia rasto.
«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.
E levantou a cabeça.
Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.
«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.
E começou a seguir a estrela.

(…)

Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.
«Será um lobo?», pensou.
Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.
«Será um ladrão?», pensou.
Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de diamantes.
— Boa noite — disse Joana.
— Boa noite — disse o rei. — Como te chamas?
— Eu, Joana — disse ela.
— Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou:
— Onde vais sozinha a esta hora da noite?
— Vou com a estrela — disse ela.
— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela.

E juntos seguiram através do pinhal.
E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.
Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.
— Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a estrela.
— Também eu — disse o rei — também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar.
E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis e os pinheiros escuros.
Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta.
— Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.
— Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.
E juntos seguiram os quatro através da noite.

(…)

Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou.
E continuaram a caminhar.
Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava.

E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.
Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.
E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar.
Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.
— Ah — disse Joana — aqui é como no presépio!
— Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio.
Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.

A noite de Natal / Sophia de Mello Breyner Andresen. Ilustrações de Maria Keil.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A Noite de Natal (II)

A Festa 

Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.
E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.
Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.
(…)
Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário. As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.
Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.
Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio, mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.
E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.
Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e luminoso, sem nenhuma sombra.
Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a atravessar o corredor.
— Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira
Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.
A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.
— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.
A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.
— O que é? — perguntou ela.
— Que presentes é que achas que eu vou ter?
— Não sei — disse Gertrudes — não posso adivinhar.
Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso continuou a fazer perguntas.
— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?
— Qual amigo? — disse a cozinheira.
— O Manuel.
— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.
— Não vai ter presentes nenhuns!?
— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.
— Mas porquê, Gertrudes?
— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
— Isso não pode ser, Gertrudes.
— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.
Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era «assim mesmo».
Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.
Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.
De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:
— Já chegaram os primos.
Então Joana foi ter com os primos.
Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.
Tinha começado a festa do Natal.
Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana pensava:
— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente.
Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.
E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.
O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.
Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.
No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a porta e entraram na sala.
As luzes elétricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do pinheiro.
(…)
E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia.
Joana olhava, olhava, olhava.
Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.
(…)
E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.
— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.
— Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento. Depois perguntou:
— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?
— O que é que eu disse?
— Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.
— Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.
— Mas então o Natal dele como foi?
— Foi como nos outros dias.
— E como é nos outros dias?
— Uma sopa e um bocado de pão.
— Gertrudes, isso é verdade?
— Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.
— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:
— Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.
E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.
«Que frio lá deve estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.
— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois suspirou e pensou:
«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»
Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.
«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»
Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.
Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.
(…)

A noite de Natal / Sophia de Mello Breyner Andresen. Ilustrações de Maria Keil.