sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (II)

Vivaldo! Vivaldo! Vivaldo! - gritava o chefe da repartição, mas ele ouvia aquela voz lá muito no fundo, a desaparecer numa esquina. Foi assim que a minha avó me começou a contar a história de Vivaldo Bonfim, o meu pai. 

Ele trabalhava no 7.º Bairro Fiscal e achava-se num mundo entediante, chato, plano, aborrecido, cheio de papéis, papeladas e outras burocracias que se fazem com a madeira das árvores. Era um mundo desprovido de literatura. A minha mãe estava grávida de mim, eu nadava no seu útero, dava voltas como a roupa na máquina de lavar, nessa altura fatídica. O meu pai só pensava em livros (livros e mais livros!), mas a vida não era da mesma opinião, a vida dele pensava noutras coisas, andava distraída, e ele teve de se empregar.

A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo de que gostamos. Contudo, o meu pai levava livros (livros e mais livros!) para a repartição de finanças e lia às escondidas sempre que podia. Não é uma atitude que se aconselhe, mas era mais forte do que ele. O meu pai amava a literatura acima de tudo. Punha sempre um livro debaixo de modelos B, impressos de alteração de atividade e outros papéis de nomes ilustres, e lia discretamente, fingindo trabalhar. Não era uma atitude muito bonita, mas o meu pai só pensava nos livros. Foi isto que a minha avó me contou com os seus pensamentos cheios de rugas na testa. Nunca conheci o meu pai. Quando nasci já ele não andava aqui neste mundo. (...) 

A um sinal da minha avó, subi as finas escadas que davam para o sótão e abri a porta. Tinha as mãos a tremer. Sabia que ali dentro, naquele sótão, estava tudo cheio de letras a fingirem-se de mortas, mas - sei muito bem - basta que pasemos os olhos por elas para saltarem cheias de vida. Hesitante, entrei e abri a janela. O sótão cheirava a sótão fechado e estava tudo cheio de pó. A luz, quando entrou, encheu toda a biblioteca de pontinhos brancos. Era um pó que já estava a entrar na adolescência, um pó com doze anos, a mesma idade que eu. Todos os livros estavam impecavelmente arrumados nas suas prateleiras, parados a seguirem-se com o seu olhar de lombada. Retribui o olhar - semicerrando os olhos - sem me deixar emboscar por nenhum daqueles títulos. Junto à janela estava o cadeirão onde o meu pai se sentava e em cima do estofo estava um livro. Senti a garganta seca  e o coração a disparar. À minha frente estava a 'A ilha do Dr. Moreau'. Peguei nele como se fosse um objeto sagrado, sentei-me no cadeirão e preparei-me para o folhear. Conseguiria fazer como o meu pai e entrar no mundo dos livros?

Uma biblioteca é um labirinto. Não é a primeira vez que me perco numa. Eu e o meu pai temos isso em comum. Penso que foi isso que lhe aconteceu. Ficou perdido no meio das letras, dos títulos, perdido no meio de todas as histórias que lhe habitavam a cabeça. Porque nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-ênes e códigos genéticos, nem de carnes e músculos e pele e cérebros.É de histórias. O meu pai, tenho a certeza, perdeu-se nesse mundo e agora ninguém lhe consegue interromper a leitura.

Li, numa das minhas tardes passadas no sótão, um conto de um escritor argentino chamado Borges, sobre um labirinto que é um deserto. Há inúmeros lugares onde um ser humano se pode perder, mas não há nenhum tão complexo como uma biblioteca. Mesmo um livro solitário é um local capaz de nos fazer errar, capaz de nos fazer perder. Era nisto que eu pensava enquanto me sentava no sótão entre tantos livros."

Os livros que devoraram o meu pai / Afonso Cruz. Lisboa: Caminho, 2010

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