quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Minutos de leitura - Hespérides II


Os homens são de pele clara, de olhos admirados como se neles pairasse o espanto de um espectáculo visto e esquecido, são silenciosos e solitários, mas não tristes, e riem-se muitas vezes e por nada, como crianças. As mulheres são belas e altivas, com os malares proeminentes e a testa alta, caminham com os cântaros à cabeça e ao descerem as íngremes escadarias que levam à água, nada do seu corpo se move, de modo que parecem estátuas a que algum deus tenha concedido o andar. Esta gente não tem rei e não conhece castas. Não existem guerreiros porque não precisam de guerrear, pois não têm vizinhos; têm sacerdotes, mas de forma muito especial como adiante te direi, e qualquer um pode sê-lo, mesmo o mais humilde camponês e o mendigo. O seu panteão não é habitado por deuses como os nossos que presidem ao céu, à terra, ao mar, aos infernos, aos bosques, às searas, à guerra e à paz e às coisas dos homens. São antes deuses do espírito, do sentimento e da paixão; os principais são nove, como as ilhas, e cada um tem o seu tempo numa ilha diferente.

O deus do Remorso e da Nostalgia é um menino com cara de velho. O seu templo ergue-se na ilha mais distante, num vale defendido por montes inacessíveis, perto de um lago, numa zona desolada e selvagem. O vale está sempre coberto por uma bruma leve como um véu, há altas faias que o vento faz murmurar e é um lugar de grande melancolia. Para chegar a este templo é preciso percorrer um atalho cavado na rocha que se assemelha ao leito de uma torrente desaparecida; e, pelo caminho, encontram-se estranhos esqueletos de animais enormes e ignotos, talvez peixes, ou talvez pássaros e conchas; e pedras rosadas como a madrepérola. (...)

E assim cheguei mesmo ao cimo do promontório, e enquanto observava o mar infinito, abandonando-me já ao desalento que a desilusão provoca, uma nuvem azul desceu sobre mim e arrebatou-me para um sonho; e sonhei que te escrevia esta carta, e que eu não era o grego que partiu em busca do Ocidente e não mais voltou, mas que estava apenas a sonhá-lo.

Hespérides", in Mulher de Porto Pim / Antonio Tabucchi. Alfragide. D. Quixote, 2006 

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