quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Escritor do mês - outubro (V)

 


"Na rua, Badini apanhava bocados de pão como se fosse um pombo. Ajuntava-os com as mãos e, chegando ao pátio, costumava reunir toda a família. Depois, atirava os pedaços de pão ao ar e via o futuro por entre os bocados que caíam, no espaço entre as migalhas do pão. O tempo vê-se em coisas essenciais e só a respiração é mais urgente do que o pão. Um homem deve ser dividido em dois, metade pão, metade ar, dizia Badini. O tempo vê-se em coisas essenciais e só a respiração é mais urgente do que o pão. Um homem deve ser dividido em dois, metade pão, metade ar, dizia Badini. É disso que ele vive. Quando o ar e pão se juntam, surge o terceiro alimento, que é a sabedoria. Está precisamente entre os espaços que o pão cria no ar. Os prognósticos de Badini eram sempre muito crípticos, mas disso dependia a sua beleza e a sua precisão. Quanto mais ambíguos mais exactos se tornavam. Animah pedia-lhe constantemente que lesse - apesar de achar que era pecado - o que diziam os bocados de pão apanhados na rua: se diziam com quem se casaria, se seria Dilawar, se seria outro, se seria bonito, se teria os olhos azuis como os artistas americanos. Badini fazia-lhe a vontade e depois vaticinava acontecimentos impossíveis que ninguém compreendia. Aminah entristecia-se depois de cada uma dessas consultas, mas não se cansava de pedir. Tinha uma esperança secreta de que um dia compreenderia aquelas estranhas sentenças que o primo dizia com as mãos. Tinha esperança de que a sua felicidade estivesse no espaço entre bocados de pão. 
Quando Isa chegou a casa com o autocarro de lata, símbolo de um nascimento, Aminah fingiu  não reparar, vinha do quintal com Badini, depois de este ter atirado ao ar uns pedaços de pão que não sabiam dizer frases concretas e objetivas. É a linguagem dos anjos, dizia-lhe Badini. No céu fala-se com muita subjectividade, pois a verdade morre quando se torna objectiva. Aminah encolheu os ombros e estalou a língua.
Fazal Elahi estava muito satisfeito e sentou-se com Badini para jogarem xadrez. Isa brincava com o autocarro de lata que era o seu nascimento."

Para onde vão os guarda-chuvas / Afonso Cruz. Lisboa: Alfaguara, 2013.

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