"O erro está muito próximo da inutilidade e ambos têm um papel fulcral na criatividade. Não precisarei de salientar este ponto que já foi muito debatido, mas sublinho a convicção de que as coisas mais importantes da vida não são utilitárias: desprezamos quem um gesto por lucro ou benefício e não pelo gesto em si, ou por amizade ou amor.
O que sentiríamos se um amigo confessasse que só conversa connosco porque lhe pagam para isso?
Ou que uma mãe confessasse ao filho que apenas o educa e o trata bem de modo a ter alguém para a amparar na velhice? É na inutilidade que está o altruísmo e aquilo que o ser humano considera naturalmente mais nobre. (...)
A ficção e a cultura constroem tudo o que somos. Não nascemos com pelos e dentes afiados e garras. Criamos roupas e ferramentas, que são sempre produto da ficção, da cultura.
A verdade salva-nos, por motivos evidentes, mas a ficção também. Podemos avisar que um tigre se aproxima, é importante dizer a verdade, constatar, mas para nos defendermos dele, precisamos de, antes de o animal ter aparecido, ter imaginado essa possibilidade para que nos consigamos salvar.
A ficção salva-nos. Literalmente. Por imaginarmos, conseguimos saber o que fazer, conseguimos ter as ferramentas ou opções necessárias ao ato. Os animais nascem com a verdade, com uma sólida realidade que lhes deixa um reduzido espectro de aprendizagem; nós nascemos com menos verdade, com menos realidade, mas com possibilidades, com as armas imponderáveis da ficção: criamos."
Vamos comprar um poeta / Afonso Cruz. Alfragide: Caminho, 2016.
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