segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Um mês com... Agustina Bessa-Luís

 


"Esposende tinha duas almas: ado sul, que era piscatória, e a do norte, que era banhista. Uma era feita de gente natural e misteriosa, com dramas e alegrias rápidas, como se um vento cínico e audaz, vindo de muito longe, talhasse a sua história. A alma do sul já existia quando o reizinho D. Sebastião jogava às laranjas com os seus cortesãos - e as comia. Porque o príncipe era guloso; em apetites de mesa a arrancadas de estribo perdeu a vida, e nós a independência e a lei dela. O que lá vai lá vai!

Quando eu fui pela primeira vez a Esposende, achei que sucedia alguma coisa de solene; como um rito. Era em Julho. Nas noites em que o calor abrasava, vinha do rio um hálito de vasa. Como se o princípio do mundo rompesse o cristal das areias e borbulhasse uma vida espessa e cega, no lodo. A motora do peixe descia pela corrente, os homens iam calados. Via-se o casco na linha da água, como uma faca abrindo a pele da noite. Os cães ladravam. A alma do sul estava acordada. Desde tempos muito antigos ela tinha aquele pacto com o mar, sobrevivia nos seus flancos, paciente, lentamente, ajustada à magra colheita de peixe e de sargaço.

A alma do norte floresceu um dia, construiu nos pinhais um chalé branco, pôs-lhe um azulejo azul, botou patamar e alpendre à moda de mestre Raul Lino. Plantaram-se tamarizes na avenida; alguma dama no seu mirante aprendia piano com um senhora do Porto, e tinha um chapéu com cerejas maduras. Distinguia-se: a sua gola de valencianas ficava cheia de grãos de areia quando ela saía à rua.”

 Memória de Esposende. In Vila e concelho de Esposende no IV centenário, 1572-1972, Agustina Bessa-Luís. 

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