segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Um mês com... Agustina Bessa-Luís

 
"Lourença tinha três irmãos. Todos aprendiam a fazer habilidades como cãezinhos, e tocavam guitarra ou dançavam em pontas dos pés. Ela não. Era até um bocado infeliz para aprender, e admirava-se de que lhe quisessem ensinar tantas coisas aborrecidas e que ela tinha de esquecer o mais depressa possível. O que mais gostava de fazer era comer maçãs e deitar-se para dormir. Mas não dormia. Fechava os olhos e acontecia-lhe então uma aventura bonita e conhecia gente maravilhosa. Eram as pessoas que ela via no cinema ou que ela já tinha encontrado em qualquer parte, mas que não sabia quem eram. Não gostava de ninguém que se pusesse entre ela e a imaginação, como um muro, e a não deixasse ver as coisas de maneira diferente. Não gostava que lhe tocassem e, sobretudo, que a gente grande pesasse com a grande em cima da sua cabeça. Apetecia-lhe morder-lhes e fugir depressa. Mas não fazia nada disso. Ficava quieta e olhava para a frente dela, cheia de seriedade. Isto tinha o efeito de causar estranheza, e diziam sempre que ela era uma menina obediente e sossegada. Mas retiravam a mão. Tinham-lhe posto o nome de "dentes de rato". porque os dentes de rato eram pequenos e finos, e pela mania que ela tinha de morder a fruta que estava na fruteira e deixar lá os dentes marcados.
    - Já aqui andou a "dentes de rato" - diziam os da casa, escandalizados. Viravam e reviravam as maçãs, e em todas havia duas dentadinhas já secas e onde a pele mirrara. Era uma mania que ninguém podia explicar. (...)

   De repente aborreceu-se de usar bibes ou o uniforme preto que a mãe achava tão distinto. Vestia Lourença à inglesa, o que era muito desengraçado. Começou a ter birras que lhe davam para não comer. A mãe não sabia como lidar com ela. Já não era Dentes de Rato, e a sensatez dela evaporara-se. (...)
   Só o pai a tratava como dantes, sem muita confiança; mas olhava às vezes para ela como se a vida parasse à volta e só Lourença estivesse viva no mundo. Raramente lhe dava um beijo e, se o fazia, era com respeito e alguma severidade. Não era um pai camarada, como se usava ser; Lourença pensava que um pai desses não lhe convinha. Não enganavam ninguém, e notava-se logo que eram tão velhos como os outros. Ela preferia que o pai fosse assim, uma pessoa um bocado doutro tempo e que falava de coisas completamente desinteressantes - do preço do vinho e da crise da lavoura. Tinha segredos com a mãe, mas isso fazia parte do direito de serem os pais e não o quaisquer outras pessoas. (...)
   
   À noite, estando aberta a janela do quarto, uma pomba veio pousar no peitoril. Começou a dar voltas e a arrulhar. "É o meu presente de anos" - pensou Lourença. "Alguém o mandou, de muito longe..." O coração dela, oprimido e cheio de inconfessáveis tristezas, encontrou de repente consolação. Achou que o mundo inteiro esperava por ela, e os mares todos, com as suas tempestades, podiam ficar calmos porque ela assim queria que fosse."

Dentes de Rato / Agustina Bessa-Luís.Lisboa: Relógio d ´Água, 2017.

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