- Já aqui andou a "dentes de rato" - diziam os da casa, escandalizados. Viravam e reviravam as maçãs, e em todas havia duas dentadinhas já secas e onde a pele mirrara. Era uma mania que ninguém podia explicar. (...)
De repente aborreceu-se de usar bibes ou o uniforme preto que a mãe achava tão distinto. Vestia Lourença à inglesa, o que era muito desengraçado. Começou a ter birras que lhe davam para não comer. A mãe não sabia como lidar com ela. Já não era Dentes de Rato, e a sensatez dela evaporara-se. (...)
Só o pai a tratava como dantes, sem muita confiança; mas olhava às vezes para ela como se a vida parasse à volta e só Lourença estivesse viva no mundo. Raramente lhe dava um beijo e, se o fazia, era com respeito e alguma severidade. Não era um pai camarada, como se usava ser; Lourença pensava que um pai desses não lhe convinha. Não enganavam ninguém, e notava-se logo que eram tão velhos como os outros. Ela preferia que o pai fosse assim, uma pessoa um bocado doutro tempo e que falava de coisas completamente desinteressantes - do preço do vinho e da crise da lavoura. Tinha segredos com a mãe, mas isso fazia parte do direito de serem os pais e não o quaisquer outras pessoas. (...)
À noite, estando aberta a janela do quarto, uma pomba veio pousar no peitoril. Começou a dar voltas e a arrulhar. "É o meu presente de anos" - pensou Lourença. "Alguém o mandou, de muito longe..." O coração dela, oprimido e cheio de inconfessáveis tristezas, encontrou de repente consolação. Achou que o mundo inteiro esperava por ela, e os mares todos, com as suas tempestades, podiam ficar calmos porque ela assim queria que fosse."
Dentes de Rato / Agustina Bessa-Luís.Lisboa: Relógio d ´Água, 2017.
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