sexta-feira, 22 de maio de 2020

Minutos de leitura (XXIV)


"O Ouriço ficou ali, a olhar para o vazio. Sim, agora havia um vazio. Sentia-se, como dizer?, esquisito. Como se, de repente, o tivesse atacado uma febre, uma doença. Caminhou ao acaso, desorientado, e, mais adiante, encontrou o Coelho, que também estava, como dizer?, esquisito.

- Onde estão as tuas rolhas? -  perguntou o Ouriço.
- Ah! As rolhas! – lembrou-se o Coelho. – Ainda agora estava a tentar lembrar-me do que vim aqui fazer e não me vinha à cabeça. Era isso. E as tuas?
- Acho que estão no mesmo sítio das tuas. Também me esqueci delas – confessou o Ouriço.
- Pois, e também estás, como dizer?, esquisito – reparou o Coelho.
- Eu? Só se for do focinho – disse o Ouriço, a pôr-se diante do Coelho, para ele ver bem.
- O que tem o teu focinho? –perguntou o Coelho, que não via nada de especial.
- Não vês? É empinado.
- O que é isso, empinado?
- Também não sei, mas quando dizemos empinado, sente-se que é uma coisa boa.
- Eu só vejo que estás, como dizer?, esquisito, e não é do focinho – concluiu o Coelho.
- Então é do olho. Encontrei uma Ouriça que me disse que o Amor estava no ar: Eu olhei para ver onde ele estava e entrou-me um pedaço daquilo para um olho.

O Coelho aproximou-se do amigo.
- Deixa ver – disse ele. – Não terá sido um cisco?
- Sim, um cisco daquilo.
- Daquilo o quê?
- Do Amor! – gritou o Ouriço. – E tu? Também estás esquisito e também te esqueceste das rolhas.
O Coelho olhou para o chão, envergonhado:
- Foi uma pancada que apanhei. Até vi um clarão e pontinhos brilhantes no ar. No meio deles estava uma linda Coelha. Havias de a ver.
- Não posso. Só vejo metade do que existe por causa do cisco. Não sai nem por nada. Mas dizias tu…

- A Coelha. Ia a passar. Disse «Olá, Coelho. Está um lindo dia, não está?» e desapareceu. Tinha os olhos vivos, o pelo fofo e macio. E dava saltos tão levezinhos…
- Sabes, acho que estás apaixonado – disse o Ouriço. – Encontrou-te o Amor, seja lá isso o que for.
-O Amor? – gemeu o Coelho. – Também lhe chamam a doença da Primavera. Mas como é que sabes?
- Por experiência própria – respondeu o Ouriço. – Encontrou-me a mim também.
- Ah! A tua Ouriça também dava saltos levezinhos? – perguntou o Coelho.
- Fazia outras coisas – respondeu o Ouriço. – Tinha uma voz que parecia uma orquestra de sinos pequeninos. Até tinha um nome. Disse ela  que o Amor anda no ar.
- No ar? Pois, a pinha veio do ar. Estou a ver – disse o Coelho. – O Amor é uma coisa que vem do ar e nos cai em cima da cabeça…
- A mim entrou-me pelo olho – disse o Ouriço, ainda a tentar livrar-se do cisco.
- Isso é porque não te apanhou a cabeça a jeito – considerou o Coelho.

Subiram para cima de uma pedra redonda.
- Parece-me tudo diferente – disse o Ouriço. – A Mata mudou. Havia uma antes e há outra agora.
Sim, algo mudara. E esse algo era tudo. Agora as flores eram sóis, pedacinhos de céu espalhados pela Mata. Agora ele era um Ouriço entorpecido carregando um sentimento desconhecido.
- Sentes-te bem? – perguntou o Coelho.
- Sim, muito bem. E mal também – respondeu o Ouriço. – Mas é assim o Amor, seja lá isso o que for. E tu, Coelho, sentes-te bem?
- Também. Mal e bem. E quando é bem é mesmo bem e quando é mal é mesmo mal. E também me sinto et cetera e tal. Quer dizer, os meus sentimentos vão tão depressa que não consigo acompanhá-los. É o que parece.

Saltaram para o chão e empurraram-se, sempre a rir. Depois, rolaram os dois por um declive, como quando eram jovens, irresponsáveis e felizes. Bela doença era aquela.
Mas nem tudo eram alegrias e excitações. Já eles iam a caminho do Largo do Pinheiro Grande quando chegaram as primeiras dúvidas. Disse o Coelho:
- Ia sempre tão contente quando voltava a casa. Agora não sei o que me parece.
- Bem te percebo – disse o Ouriço. – Quando saí de casa, de manhã, não me faltava nada. Agora sinto que me falta qualquer coisa.

- Falta-te a Ouriça- disse o Coelho.
- É isso! – concordou o Ouriço. – Antes de a ver, eu era eu, agora eu sou eu e ela. Logo, falta-me ela.
O Coelho coçou a cabeça, algo confuso. Depois disse:
- Não compliques, ó Ouriço! Falta-te a Ouriça, logo, estás desouriçado, digamos assim. Mais nada.
- E tu estás descoelhado – ripostou o Ouriço. – Saímos de casa tão bem e voltamos assim: descoelhados e desouriçados.
- Vês? – É o Amor, seja lá isso o que for."

" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.  
Imagem: Copyright: Alice Jackson

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