"O Ouriço
ficou ali, a olhar para o vazio. Sim, agora havia um vazio. Sentia-se, como
dizer?, esquisito. Como se, de repente, o tivesse atacado uma febre, uma
doença. Caminhou ao acaso, desorientado, e, mais adiante, encontrou o Coelho,
que também estava, como dizer?, esquisito.
- Onde
estão as tuas rolhas? - perguntou o
Ouriço.
- Ah! As
rolhas! – lembrou-se o Coelho. – Ainda agora estava a tentar lembrar-me do que
vim aqui fazer e não me vinha à cabeça. Era isso. E as tuas?
- Acho que
estão no mesmo sítio das tuas. Também me esqueci delas – confessou o Ouriço.
- Pois, e
também estás, como dizer?, esquisito – reparou o Coelho.
- Eu? Só se
for do focinho – disse o Ouriço, a pôr-se diante do Coelho, para ele ver bem.
- O que tem
o teu focinho? –perguntou o Coelho, que não via nada de especial.
- Não vês?
É empinado.
- O que é
isso, empinado?
- Também
não sei, mas quando dizemos empinado, sente-se que é uma coisa boa.
- Eu só
vejo que estás, como dizer?, esquisito, e não é do focinho – concluiu o Coelho.
- Então é
do olho. Encontrei uma Ouriça que me disse que o Amor estava no ar: Eu olhei
para ver onde ele estava e entrou-me um pedaço daquilo para um olho.
O Coelho
aproximou-se do amigo.
- Deixa ver
– disse ele. – Não terá sido um cisco?
- Sim, um
cisco daquilo.
- Daquilo o
quê?
- Do Amor!
– gritou o Ouriço. – E tu? Também estás esquisito e também te esqueceste das
rolhas.
O Coelho
olhou para o chão, envergonhado:
- Foi uma
pancada que apanhei. Até vi um clarão e pontinhos brilhantes no ar. No meio
deles estava uma linda Coelha. Havias de a ver.
- Não
posso. Só vejo metade do que existe por causa do cisco. Não sai nem por nada.
Mas dizias tu…
- A Coelha.
Ia a passar. Disse «Olá, Coelho. Está um lindo dia, não está?» e desapareceu.
Tinha os olhos vivos, o pelo fofo e macio. E dava saltos tão levezinhos…
- Sabes,
acho que estás apaixonado – disse o Ouriço. – Encontrou-te o Amor, seja lá isso
o que for.
-O Amor? –
gemeu o Coelho. – Também lhe chamam a doença da Primavera. Mas como é que
sabes?
- Por
experiência própria – respondeu o Ouriço. – Encontrou-me a mim também.
- Ah! A tua
Ouriça também dava saltos levezinhos? – perguntou o Coelho.
- Fazia
outras coisas – respondeu o Ouriço. – Tinha uma voz que parecia uma orquestra
de sinos pequeninos. Até tinha um nome. Disse ela que o Amor anda no ar.
- No ar?
Pois, a pinha veio do ar. Estou a ver – disse o Coelho. – O Amor é uma coisa
que vem do ar e nos cai em cima da cabeça…
- A mim
entrou-me pelo olho – disse o Ouriço, ainda a tentar livrar-se do cisco.
- Isso é
porque não te apanhou a cabeça a jeito – considerou o Coelho.
Subiram
para cima de uma pedra redonda.
- Parece-me
tudo diferente – disse o Ouriço. – A Mata mudou. Havia uma antes e há outra
agora.
Sim, algo
mudara. E esse algo era tudo. Agora as flores eram sóis, pedacinhos de céu
espalhados pela Mata. Agora ele era um Ouriço entorpecido carregando um
sentimento desconhecido.
- Sentes-te
bem? – perguntou o Coelho.
- Sim,
muito bem. E mal também – respondeu o Ouriço. – Mas é assim o Amor, seja lá
isso o que for. E tu, Coelho, sentes-te bem?
- Também.
Mal e bem. E quando é bem é mesmo bem e quando é mal é mesmo mal. E também me
sinto et cetera e tal. Quer dizer, os meus sentimentos vão tão depressa que não
consigo acompanhá-los. É o que parece.
Saltaram
para o chão e empurraram-se, sempre a rir. Depois, rolaram os dois por um
declive, como quando eram jovens, irresponsáveis e felizes. Bela doença era
aquela.
Mas nem
tudo eram alegrias e excitações. Já eles iam a caminho do Largo do Pinheiro
Grande quando chegaram as primeiras dúvidas. Disse o Coelho:
- Ia sempre
tão contente quando voltava a casa. Agora não sei o que me parece.
- Bem te
percebo – disse o Ouriço. – Quando saí de casa, de manhã, não me faltava nada.
Agora sinto que me falta qualquer coisa.
- Falta-te
a Ouriça- disse o Coelho.
- É isso! –
concordou o Ouriço. – Antes de a ver, eu era eu, agora eu sou eu e ela. Logo,
falta-me ela.
O Coelho
coçou a cabeça, algo confuso. Depois disse:
- Não
compliques, ó Ouriço! Falta-te a Ouriça, logo, estás desouriçado, digamos
assim. Mais nada.
- E tu
estás descoelhado – ripostou o Ouriço. – Saímos de casa tão bem e voltamos
assim: descoelhados e desouriçados.
- Vês? – É
o Amor, seja lá isso o que for."
" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.
Imagem: Copyright: Alice Jackson
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