"Era uma vez uma casa muito
arrumada onde morava um rapaz muito desarrumado. E o rapaz tinha a
impressão de que não era feito para morar naquela casa. Ali os relógios estavam
sempre certos mas ele andava sempre atrasado. Ele esquecia-se da bola na sala e
dos livros no jardim. Ele deixava a caneta na cozinha, os sapatos no corredor,
o relógio no lavatório. Porque jogava à bola na sala, lia no jardim, escrevia
em toda a parte, despia-se no corredor e só se lembrava de tirar o relógio
quando já estava dentro do banho. Por isso todos ralhavam com ele e pensava:
- Esta casa é um tribunal.
Havia horas certas para tudo, leis, regras, lugares para pôr as coisas.
E o rapaz que se chamava Ruy deitava-se infeliz e cismando nas ervas do
jardim.
Era raro o dia em que ele não entornava ou
um copo na mesa, ou um tinteiro nos cadernos, ou uma jarra no tapete, ou um
cinzeiro em cima das visitas.
Parecia-lhe que tinha braços e pernas a mais pois quando entrava numa
sala tropeçava num tapete, pisava as senhoras e dava sempre uma canelada em
alguém. Tinha que passar a vida a pedir desculpa.
E à noite abria a janela do seu quarto, respirava o vento que vinha de
longe, olhava as estrelas e pensava na liberdade. Já não era um rapaz pequeno
mas ainda não era um rapaz crescido. Tinha ordem de ir de casa direito para o
colégio e de vir do colégio direito para casa. O colégio ficava a vinte minutos
de distância e ele conhecia palmo a palmo aquela rua.
À volta da casa havia um grande jardim. E enquanto Ruy era pequeno o
jardim parecia-lhe enorme com as suas tílias profundas, as suas magnólias de
folhas brilhantes e as suas palmeiras despenteadas. Mas com o tempo o jardim
foi diminuindo. Era como se o muro se fosse apertando lentamente como um laço.
E tudo isto parecia irremediável. Mas um dia Ruy, depois de ter partido um copo
e pisado uma visita, foi para o fundo do jardim e deitou-se na relava em frente
ao muro, à sombra duma tília, sozinho e cismando.
Era o fim dum dia de Primavera. Ruy sentia-se ao mesmo tempo feliz e
infeliz. A leveza do ar, a cor vermelha do poente, o brilho e a frescura das
árvores, o perfume das flores, a doçura quebrada da luz pareciam prometer-lhe
uma felicidade maravilhosa. Mas ele não sabia nem como nem quando nem onde a
poderia agarrar. Parecia-lhe que, algures no vasto mundo, se estava a preparar
uma festa incrível a que ele não poderia assistir. Porque a festa se passava
fora de muros e ele estava preso dentro dos muros. (…)
Os dias foram passando, com aquela pressa que o tempo sempre tem quando
não estamos a reparar nele. Todas as manhãs, os dois rapazes e a rapariga saíam
para o treino. Todas as tardes, Ruy ensinava a Gela as letras e os números, tal
como aprendera na escola, enquanto Yanko se distraía a inspecionar ninhos de
pintarroxo, a estudar as rendas cuidadas de uma teia de aranha, a descobrir a
toca de um toirão no buraco de uma árvore, seguindo o rasto deixado pelas suas
pegadas durante a noite. Ruy agora que aprendera a respeitar o tempo e o espaço
das coisas, descobria-se a fazer o que antes lhe parecia impossível. (….)
Fontes corriam em cascata, o musgo cobria as pedras enormes, um curto vento
agreste surgia entre as árvores. Ruy contemplava o vale trincando uma folha
amarga de loureiro.
- Gela - disse ele
chamando a rapariga do arame.
- Diz - perguntou Gela.
- É aqui que vocês moram?
- Gela olhou-o de frente.
- Nós não moramos aqui nem
em nenhum outro lugar - disse ela. - Nós não moramos, nós vamos".
Os ciganos /
Sophia de Mello Breyner Andresen
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