sexta-feira, 29 de maio de 2020

Minutos de leitura (XXIX)


"Era uma vez uma casa muito arrumada onde morava um rapaz muito desarrumado. E o rapaz tinha a impressão de que não era feito para morar naquela casa. Ali os relógios estavam sempre certos mas ele andava sempre atrasado. Ele esquecia-se da bola na sala e dos livros no jardim. Ele deixava a caneta na cozinha, os sapatos no corredor, o relógio no lavatório. Porque jogava à bola na sala, lia no jardim, escrevia em toda a parte, despia-se no corredor e só se lembrava de tirar o relógio quando já estava dentro do banho. Por isso todos ralhavam com ele e pensava:
     - Esta casa é um tribunal.
     Havia horas certas para tudo, leis, regras, lugares para pôr as coisas.
     E o rapaz que se chamava Ruy deitava-se infeliz e cismando nas ervas do jardim.
     Era raro o dia em que ele não entornava ou um copo na mesa, ou um tinteiro nos cadernos, ou uma jarra no tapete, ou um cinzeiro em cima das visitas.
      Parecia-lhe que tinha braços e pernas a mais pois quando entrava numa sala tropeçava num tapete, pisava as senhoras e dava sempre uma canelada em alguém. Tinha que passar a vida a pedir desculpa.
     E à noite abria a janela do seu quarto, respirava o vento que vinha de longe, olhava as estrelas e pensava na liberdade. Já não era um rapaz pequeno mas ainda não era um rapaz crescido. Tinha ordem de ir de casa direito para o colégio e de vir do colégio direito para casa. O colégio ficava a vinte minutos de distância e ele conhecia palmo a palmo aquela rua.
     À volta da casa havia um grande jardim. E enquanto Ruy era pequeno o jardim parecia-lhe enorme com as suas tílias profundas, as suas magnólias de folhas brilhantes e as suas palmeiras despenteadas. Mas com o tempo o jardim foi diminuindo. Era como se o muro se fosse apertando lentamente como um laço. E tudo isto parecia irremediável. Mas um dia Ruy, depois de ter partido um copo e pisado uma visita, foi para o fundo do jardim e deitou-se na relava em frente ao muro, à sombra duma tília, sozinho e cismando.
     Era o fim dum dia de Primavera. Ruy sentia-se ao mesmo tempo feliz e infeliz. A leveza do ar, a cor vermelha do poente, o brilho e a frescura das árvores, o perfume das flores, a doçura quebrada da luz pareciam prometer-lhe uma felicidade maravilhosa. Mas ele não sabia nem como nem quando nem onde a poderia agarrar. Parecia-lhe que, algures no vasto mundo, se estava a preparar uma festa incrível a que ele não poderia assistir. Porque a festa se passava fora de muros e ele estava preso dentro dos muros. (…)
     Os dias foram passando, com aquela pressa que o tempo sempre tem quando não estamos a reparar nele. Todas as manhãs, os dois rapazes e a rapariga saíam para o treino. Todas as tardes, Ruy ensinava a Gela as letras e os números, tal como aprendera na escola, enquanto Yanko se distraía a inspecionar ninhos de pintarroxo, a estudar as rendas cuidadas de uma teia de aranha, a descobrir a toca de um toirão no buraco de uma árvore, seguindo o rasto deixado pelas suas pegadas durante a noite. Ruy agora que aprendera a respeitar o tempo e o espaço das coisas, descobria-se a fazer o que antes lhe parecia impossível. (….) Fontes corriam em cascata, o musgo cobria as pedras enormes, um curto vento agreste surgia entre as árvores. Ruy contemplava o vale trincando uma folha amarga de loureiro.
   - Gela - disse ele chamando a rapariga do arame.
   - Diz - perguntou Gela.
   - É aqui que vocês moram?
   - Gela olhou-o de frente.
   - Nós não moramos aqui nem em nenhum outro lugar - disse ela. - Nós não moramos, nós vamos". 

Os ciganos / Sophia de Mello Breyner Andresen

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