segunda-feira, 18 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XX - 3.º Ciclo)


“Quando é que ouvi falar pela primeira vez da harpa de ervas?…. Muito antes do Outono que passámos na amargoseira; num Outono anterior, portanto; e, como não podia deixar de ser, foi Dolly quem me contou, pois mais ninguém se lembraria de lha chamar isso, uma harpa de ervas. 
O viajante que, ao sair da cidade, siga pela estrada da igreja, passará em breve por uma colina ofuscante de lápides brancas como ossos e flores castanhas, queimadas do sol. (…) 

No sopé da colina há um prado de erva-dos-índios muito alta, que muda de cor com as estações do ano; vão vê-la no Outono, em finais de Setembro, quando fica vermelha como um crepúsculo, quando as sombras escarlates como labaredas sopram sobre ela e os ventos outonais dedilham as folhas secas, entoando uma música humana feita de suspiros, uma harpa de vozes. (…)
 
Dolly dizia que, quando era pequena, gostava de acordar nas manhãs de Inverno e ouvir o pai a cantar enquanto andava pela casa a acender as lareiras; depois de ele ter envelhecido e já depois de morto, ela ouvia por vezes as canções dele no prado de erva-dos-índios. É o vento, dizia Catherine; e Dolly respondia: Mas o vento somos nós – absorve todas as nossas vozes e lembra-se delas, depois sopra-as através das folhas e dos campos, a falarem e a contarem histórias. (…)
 
O vento, levantando-se de surpresa, fez rumorejar as folhas e as nuvens nocturnas, libertando torrentes de luz das estrelas; a nossa vela, como que intimidada pela incandescência do céu trespassado de estrelinhas e agora limpo, vacilou, e pudemos ver, descerrada por cima de nós, uma Lua distante, gélida e tardia; parecia uma talhada de neve, a quem as crianças espalhadas pelos quatro cantos do bosque começaram a lançar os seus chamamentos. Catherine estendeu uma ponta da manta de retalhos cor-de-rosa, insistindo para que Dolly se embrulhasse nela; em seguida, pôs-me os braços em volta do corpo e coçou-me o cabelo até eu me descontrair e lhe deitar a cabeça no regaço. – Tens frio? – perguntou, e eu aconcheguei-me melhor; o corpo dela era acolhedor e quente como a velha cozinha. (…)
 
Riley, sempre à escuta dos rosnidos do lince com expressão ansiosa de caçador, lançou a mão às folhas que se agitavam em torno de nós como traças nocturnas; uma delas ficou-lhe presa entre os dedos, viva, palpitante, como se quisesse escapar, voar para longe. O juiz imitou-o: agarrou uma folha; e era mais valiosa na sua mão do que na de Riley. 
Encostando-a suavemente à face, disse em voz distante: – estamos a falar de amor. Uma folha, um punhado de sementes… começa por estas coisas, aprende aos poucos o que é amar. Primeiro uma folha, um aguaceiro, depois alguém para receber o que uma folha te ensinou, o que a chuva fez amadurecer em ti. Não é um processo fácil, atenção; pode levar uma vida inteira, como aconteceu comigo, e, mesmo assim, ainda não lhe conheço os meandros; sei apenas que a verdade é essa e só essa: que o amor é uma cadeia de ternura, assim como a natureza é uma cadeia de vida. (…)
 
Por volta da meia-noite a chuva abrandou, depois parou; o vento rodopiou por ali, espremendo as árvores. Uma a uma, como convidados que chegaram tarde a um baile, as estrelas surgiram, perfumando o céu. Estava na altura de partir. Nada levámos connosco: deixámos a manta a apodrecer, as colheres a enferrujar; e a casa da árvore, a floresta, deixámo-las entregues à sua hibernação. "

Harpa de ervas / Truman Capote. Porto : Sextante, 2011. 

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