"Era uma
vez uma menina com cabelos loiros caídos até aos ombros. Dos seus olhos claros
– diz quem alguma vez os fixou – transbordava um mar de interminável ternura.
Olhava para tudo como se fosse sempre a primeira vez. E a sua voz era uma das
mais meigas e suaves que alguma vez se escutou. Eu, que a ouvi muitas vezes,
digo-vos que Matilde nunca deixava de falar com a alma e o coração.
Vivia numa numa
quinta grande dos avós. Nessa quinta existia um grande jardim de rosas
vermelhas e violetas rasteiras. A porta da entrada era decorada por uma
frondosa trepadeira de flores que ora pareciam azuis ora roxas. Matilde
chamava-lhe Buga. Nas noites quentes, quando o cheiro da trepadeira inundava o
jardim, Matilde e a amiga tinham longas conversas. Era um segredo só das duas.
Matilde, gostava tanto dela, que quando o seu gato dourado morreu, quis que ele
ficasse sepultado junto às suas raízes. Desta forma, o gato dourado continuaria
ali com ela e com o Pastor, o seu cão branco, de olhos castanhos e doces, que
todos os dias ia para lá ladrar e fazer buraquinhos na terra, como que a chamar
o companheiro de antigas brincadeiras. Às vezes, o Pastor levava-lhe ossos.
Mas, como os gatos não gostam de ossos, era ele que acabava por comê-los.
O jardim tinha
ainda espaço para algumas árvores de frutos: laranjeiras, macieiras, cerejeiras
e oliveiras com folhas cor de prata. Matilde gostava especialmente de uma das
laranjeiras. Devido ao amor que lhe tinha, ficou com a alcunha de Laranjinha.
Essa árvore tinha um tronco forte onde, bem no meio, havia uma covinha que
parecia um banco. Matilde sentava-se aí a ler poemas em voz alta para a
laranjeira, para os pássaros e para as formigas que ali passavam em
carreirinho. Ela gostava de ouvir o som das palavras, para as saborear com
todos os sentidos. Procurava a música própria de cada uma e a seguir
desenhava-as cuidadosamente, letra por letra. No fim, surgiam palavras de todos
os tamanhos, cores e feitios. Um jardim encantado de palavras.
A casa como
já disse, era muito grande. O quarto de Matilde tinha como paisagem um imenso
descampado, um jardim zoológico (de que Matilde não gostava, porque compreendeu
desde cedo que os animais presos sofrem) e uma escola só de meninas (naquela
altura, as meninas e os meninos estudavam em escolas separadas). Matilde não ia
à escola. Tinha uma professora que a ensinava em casa. Mas isso-acreditem em
mim – deixava-a muito triste. Ela desejava ser uma criança como as outras.
Queria ter uma sacola para levar os livros, o lanche e, principalmente, ter
amigas com quem brincar.
Todas
as manhãs Matilde acordava com as vozes e os risos das crianças. Com os seus
olhos brilhantes, olhava a rua e imaginava-se no meio delas. Mas a sua escola
era lá em baixo na sala, onde a esperavam os seus livros e a professora Ernestina.
Nos dias de sol, na hora do recreio das meninas da escola, Matilde perguntava à
professora se também podia fazer o seu recreio. Se Ernestina permitia, ela ia
para o jardim, encostava o ouvido ao portão quente e ouvia uma melodia que
sabia de cor desde que se lembrava de si: ”Cabra cega, de onde vens?”, “Não vês
mesmo nada?”. Matilde fingia que era a si que perguntavam e, muito baixinho,
respondia: “Nada, nadinha":
Havia uma canção de roda
que lhe prendia a atenção como nenhuma outra:
Rosa
branca ao peito
A
todas fica bem,
À
menina Matilde
Melhor
do que ninguém.
Matilde
não era ela, mas era bom fazer de conta que estava lá a rir e a bater palmas.
Ao fim da tarde acabava a escola e as aulas de Matilde também. As meninas iam
para casa e Matilde subia ao seu quarto. É que ao cair do dia costumava receber
a visita de uma pomba. Uma pomba branca que poisava sempre na beirada da sua
janela e esperava a pequena mão de Matilde, sempre recheada de grãos de milho
doirados. Quando a fome já estava saciada, ela enroscava-se na mão de Matilde e
com o seu pequeno pescoço fazia gestos de agradecimento. Quase que parecia um
gato. A seguir, a pomba voltava para o beiral da escola e acomodava as penas no
seu ninho, onde a esperavam outras pombas mais pequeninas.
Enquanto
assistia a esse voo, Matilde cantava sempre:
Lá vai uma
Lá vão duas
Três pombinhas a voar
Uma é minha
Outra é tua
Outra é de quem a apanhar."
Matilde Rosa Araújo, um olhar de menina /Adélia Carvalho. Lisboa: Trinta por uma linha, 2010.
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