quinta-feira, 28 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXVIII - 3.º Ciclo)

"Violeta, sob as sombras, definhava:
- Meu Deus! Que triste vida! Não acontece nada...  E eu, tão bonita, com tão doce cheiro, aqui presa no mato, debaixo destes tufos, sem poder correr mundo, vir nos jornais, entrar na sociedade!...


E vá de lamentar-se, chorar e pôr perfume; pôr perfume, chorar e lamentar-se, dia e noite, sem fim, que até fazia dó. "Fazia dó" é só um modo de dizer porque os vizinhos de Violeta não tinham pena nenhuma dela e andavam mesmo muito aborrecidos com aquele estardalhaço de choros e lamentos e um tal exagero de perfumes que abafava qualquer odor em volta.

- Ora esta! - exclamava um dente-de-leão. - Vem a gente para aqui para gozar os bons ares e parece que está no átrio de um teatro.
- Já é preciso azar - diziam as urtigas. - O que custou à nossa mãe-semente voar por essas serras contra todos os ventos para achar esta encosta recatada e tranquila... para afinal morarmos ao lado desta vampe que não faz outra coisa senão incomodar-nos!...

Eetcétera. Havia, por exemplo, um gafanhoto todo ecologista que acusava a Violeta de sufocar o aroma balsâmico das seivas. E havia mesmo um pé de hortelã-pimenta que se esticava todo para ver se saltava e se ia plantar um pouco mais além, onde os homens, passando, dissessem:
- Que bom cheiro a hortelã-pimenta!
Em vez de: - Que bom cheiro a violetas!

Para Violeta, estes elogios e aquelas invejas e recriminações não chegavam para dar sentido à vida. Queria sair da sombra, da mediocridade. E viu passar a brisa:
- Brisa, minha boa brisa, toma-me nos teus braços e leva-me contigo para uma cidade, onde eu possa brilhar, ser admirada, ganhar muito dinheiro, dar autógrafos...

A brisa estava com falta de paciência. Por todos os lugares onde passava havia sempre alguém que suspirava, punha os olhos em alvo e começava:
- Brisa, minha boa brisa, faz-me isto, faz-me aquilo...

Ora tomara a brisa que a deixassem em paz! Bastante apoquentada andava ela com o próprio destino: para cá, para lá, vem do mar, vem da terra, carrega agora o cheiro do pinhal, agora o cheiro da lenha, o cheiro a mosto, daqui para ali, dali para aqui, sem descansar... Para quê? Sim, para quê? Ninguém sabia.
- Estúpida Violeta! - disse a brisa que, além de impaciente, era mal-educada. - Ando eu aqui estafada de um lado para o outro e tu aí quietinha, bem comida, bem dormida, abrigada e bem-cheirosa e ainda me vens por cima com Literaturas! 
Literaturas baratas, já se vê, tiradas das cantigas que os homens trazem para o campo em rádios quando fazem piqueniques aos domingos. "Brisa, minha brisa, isto e aquilo..." Julgam que eu sou a mala-posta, ou quê? Não levo nada, não trago nada para ninguém. Ponto final!

Violeta ficou muito ofendida. Chorou, chorou, chorou: fez um laguinho com as suas lágrimas. Vai o sol, achou graça àquele laguinho. Esgueirou-se entre a folhagem e foi para lá brincar. Vai, fez-se um arco-íris: lindo, lindo!... Violeta sorriu. Olhou melhor. Uma das cores estava a dizer-lhe adeus.

- Olá - disse a Violeta. - Quem és tu?
- Eu sou  Violeta - disse a cor.
- És tão bonito... - disse a Violeta. - Seremos nós parentes?
- Temos muitas parecenças - disse a cor. - Olho para ti e até parece que me reconheço.
- Vem ter comigo - suspirou a Violeta.
- Vou tentar - disse a cor. E deu tanto esticão que se soltou do arco-íris. Vai, poisou sobre a flor e sentiu-se tão bem, tão bem, que lá ficou. Agora, conta histórias do que viu quando andava no céu ou entre as chuvas, ou nos jardins, no meio dos repuxos.

E a Violeta . está claro - ri-se, ri-se, tornou-se bem-disposta, perdeu as ambições: não quer saber de autógrafos para nada. Ou não fosse esta, verdadeiramente, uma história de amor com violetas."

A luz de Newton / Hélia Correia. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagem: Veilchen & Bilder

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