"O Ouriço
corou. Sentia o sangue a ferver. Ia a falar, mas engasgou-se com a saliva e
começou a tossir. Foi preciso esperar que ele recuperasse a voz.
- Olarilolé?
– disse, por fim. – Ora bem, também
gostava de saber o que quer dizer. Foi uma palavra que me apareceu quando
estava a pensar numa rima para «que bom que é». Penso que lhe dei jeito a ela
entrar na canção. E a mim também.
- Também
sei uma canção. Queres ouvir? – Perguntou a Ouriça, mas não esperou pela
resposta e cantou logo a seguir:
Se é
Primavera e o Amor está no ar
e encontras
um lindo Ouriço
de focinho
empinado,
foge
depressa, ou és apanhado!
Tudo no
Ouriço tremeu e estremeceu, embora não tivesse percebido certas partes daquela
canção.
- Apanhado
por quem? – perguntou.
- Pelo
Amor, palerma. Ele está no ar. Não o sentes? – disse ela a rir.
O Ouriço
espetou o focinho no ar.
- A que
cheira? – perguntou.
- A amor –
respondeu ela. – A que haveria de cheirar o Amor?
Ele olhou
para o ar à espera de ver ao menos um pedaço daquilo e entrou-lhe um cisco para
o olho. Seria o tal Amor? Se era isso, era uma aflição.
- Nunca te
tinha visto por aqui – disse ele a ganhar tempo para se livrar do cisco. Mas
qual quê!
- E agora
também não vejo, por acaso – acrescentou.
E então
soou o vozeirão de uma Criatura Medonha que se aproximou da vedação do Parque
de Campismo e chamou muito alto:
- Madonna!
Madonna!
- Lá estão
eles! Têm medo que eu fuja – comentou a Ouriça.
- Era
contigo? Quem são eles? – perguntou o Ouriço
- São os
meus donos.
- O que é
isso?
- São as
pessoas que tomam conta de mim. Não tens quem tome conta de ti?
O Ouriço
pôs-se a pensar naquilo.
- Vives na
Mata, é diferente – continuou ela. – Sabes cuidar de ti, tens coisas à mão. Se
vivesses num apartamento ou numa tenda, ou numa gaiola, precisavas que te
dessem de comer, e também de alguma atenção.
- E nunca
quiseste conhecer a Mata? – perguntou ele.
- É tão
grande! – respondeu ela a olhar em volta. – Para quem vive numa tenda, num
apartamento ou numa gaiola, evidentemente. Acho que tenho medo.
- Madonna!
– voltou a gritar o vozeirão.
- Tenho de
ir – disse ela, à procura de um pretexto para atrasar aquela despedida.
O Ouriço
também não queria despedir-se. Tinham acabado de se conhecer e tanto a dizer um
ao outro, embora ele não soubesse o quê.
- Não vou
esquecer deste pinheiro – disse ela. – Foi onde te conheci. Gosto de árvores.
Na casa da cidade, temos uma no quintal. É à sombra dela que eu faço as minhas
canções. Quando o cão me deixa. Há um cão lá em casa. E dois gatos. E um peixe
vermelho que mora numa bola de vidro.
Enquanto
falava, a Ouriça gravou o nome dela na árvore com as unhas.
- Madonna!
– voltou o vozeirão.
- Agora
escreve o teu nome ao lado…- pediu ela.
O Ouriço
escreveu, também com as unhas: «Ourisso»
- És um
Ouriço com dois esses? – perguntou ela admirada.
O Ouriço
coçou a cabeça. Então os ouriços não tinham todos dois esses? Ou teriam um cê
de cedilha? Era isso! Bem lhe dizia a Toupeira que ele devia aprender a
escrever o nome dele.
- Vou
emendar – disse ele, envergonhado. – Também sou desses ouriços com cê de
cedilha.
- Não é
preciso. Eu sei que sim – disse ela a desenhar um coração que envolveu os dois
nomes, tal como acontecia com os outros nomes que estavam no mesmo tronco.
- Para que
é o coração? – perguntou o Ouriço.
Ela também
não sabia, mas encontrou uma boa resposta.
- Acho que
é para guardar os dois nomes e não os deixar sair dali.
- Madonna!
– voltou o vozeirão.
- Desta é
que vou – disse a Ouriça com uma vozinha de nada. – Quando quiseres, aparece na
nossa tenda. É amarela, a nº 3.
E lá foi a
correr, sem olhar para trás uma única vez."
" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.
Imagem: Copyright: Hedgehog
Sem comentários:
Enviar um comentário