quinta-feira, 21 de maio de 2020

Minutos de leitura (XXIII)


"O Ouriço corou. Sentia o sangue a ferver. Ia a falar, mas engasgou-se com a saliva e começou a tossir. Foi preciso esperar que ele recuperasse a voz.
- Olarilolé? – disse, por fim.  – Ora bem, também gostava de saber o que quer dizer. Foi uma palavra que me apareceu quando estava a pensar numa rima para «que bom que é». Penso que lhe dei jeito a ela entrar na canção. E a mim também.

- Também sei uma canção. Queres ouvir? – Perguntou a Ouriça, mas não esperou pela resposta e cantou logo a seguir:
Se é Primavera e o Amor está no ar
e encontras um lindo Ouriço
de focinho empinado,
foge depressa, ou és apanhado!

Tudo no Ouriço tremeu e estremeceu, embora não tivesse percebido certas partes daquela canção.
- Apanhado por quem? – perguntou.
- Pelo Amor, palerma. Ele está no ar. Não o sentes? – disse ela a rir.

O Ouriço espetou o focinho no ar.
- A que cheira? – perguntou.
- A amor – respondeu ela. – A que haveria de cheirar o Amor?

Ele olhou para o ar à espera de ver ao menos um pedaço daquilo e entrou-lhe um cisco para o olho. Seria o tal Amor? Se era isso, era uma aflição.
- Nunca te tinha visto por aqui – disse ele a ganhar tempo para se livrar do cisco. Mas qual quê!
- E agora também não vejo, por acaso – acrescentou.

E então soou o vozeirão de uma Criatura Medonha que se aproximou da vedação do Parque de Campismo e chamou muito alto:
- Madonna! Madonna!
- Lá estão eles! Têm medo que eu fuja – comentou a Ouriça.
- Era contigo? Quem são eles? – perguntou o Ouriço
- São os meus donos.
- O que é isso?
- São as pessoas que tomam conta de mim. Não tens quem tome conta de ti?
O Ouriço pôs-se a pensar naquilo.
- Vives na Mata, é diferente – continuou ela. – Sabes cuidar de ti, tens coisas à mão. Se vivesses num apartamento ou numa tenda, ou numa gaiola, precisavas que te dessem de comer, e também de alguma atenção.
- E nunca quiseste conhecer a Mata? – perguntou ele.
- É tão grande! – respondeu ela a olhar em volta. – Para quem vive numa tenda, num apartamento ou numa gaiola, evidentemente. Acho que tenho medo.
- Madonna! – voltou a gritar o vozeirão.
- Tenho de ir – disse ela, à procura de um pretexto para atrasar aquela despedida.

O Ouriço também não queria despedir-se. Tinham acabado de se conhecer e tanto a dizer um ao outro, embora ele não soubesse o quê.
- Não vou esquecer deste pinheiro – disse ela. – Foi onde te conheci. Gosto de árvores. Na casa da cidade, temos uma no quintal. É à sombra dela que eu faço as minhas canções. Quando o cão me deixa. Há um cão lá em casa. E dois gatos. E um peixe vermelho que mora numa bola de vidro.

Enquanto falava, a Ouriça gravou o nome dela na árvore com as unhas.
- Madonna! – voltou o vozeirão.
- Agora escreve o teu nome ao lado…- pediu ela.

O Ouriço escreveu, também com as unhas: «Ourisso»
- És um Ouriço com dois esses? – perguntou ela admirada.  

O Ouriço coçou a cabeça. Então os ouriços não tinham todos dois esses? Ou teriam um cê de cedilha? Era isso! Bem lhe dizia a Toupeira que ele devia aprender a escrever o nome dele.
- Vou emendar – disse ele, envergonhado. – Também sou desses ouriços com cê de cedilha.
- Não é preciso. Eu sei que sim – disse ela a desenhar um coração que envolveu os dois nomes, tal como acontecia com os outros nomes que estavam no mesmo tronco.
- Para que é o coração? – perguntou o Ouriço.

Ela também não sabia, mas encontrou uma boa resposta.
- Acho que é para guardar os dois nomes e não os deixar sair dali.
- Madonna! – voltou o vozeirão.
- Desta é que vou – disse a Ouriça com uma vozinha de nada. – Quando quiseres, aparece na nossa tenda. É amarela, a nº 3.
E lá foi a correr, sem olhar para trás uma única vez."

" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.  
Imagem: Copyright: Hedgehog 

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