quarta-feira, 13 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XVII-3.º Ciclo)


"Quando regresso do mar, venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos - seis linhas - um tipo - uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadrinhos ao ar livre, são melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-se e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto at+e mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. - Eu também nunca mais a esqueci...

10 de Agosto - 1921

Esta nossa terra portuguesa vai pela costa fora sempre de braços abertos para o mar, estreitando-o amorosamente contra si. Começa em Caminha até ao forte de Ãncora - de Âncora ao extremo do monte da Gelfa, e daí ao farol de Montedor, em três largas reentrâncias, que têm como pano de fundo a cadeia azulada dos montes, de onde emerge um ou outro cone transparente... Todas as povoações são viradas para o mar. O sol doira uma janela, uma eira, um espigueiro, o campo de milho alimentado a sargaço que tem os pés na água. E o biombo cor de lousa desenrola-se ao lado do comboio...

31 de Agosto

De3ixo esta manhã Viana e os incaracterísticos pescadores da Ribeira e sigo pelo pinhal de Darque, Anha, S. Romão de Neiva, para Esposende, com o rio à esquerda por terras vermelhas, donde irrompem alguns tufos de pinheiros majestosos como templos. Ao longe a serra de Arga e as torres de S. Silvestre... Ficam-me na retina uma igreja branca, a de Darque, recortada ao céu, e a verde solidão dos pinheirais, que associo sempre à ideia do mar largo. Pela estrada incaracterística acompanho carreadas de sargaço e de patelo, até que chego a Belinho, onde o grande poeta exilado bate as portas na cara do mar que detesta - depois de atravessar um fio de água, com o morro selvático do Castelo de Neiva em frente. 

De Belinho para S. Bartolomeu já me envolve a poalha da tarde e depois uma luz violenta nas Marinhas. Tenho de um lado os montes escuros e do outro o mar verde com o resplendor do céu em cima. À beira da estrada branca de poeira, movem-se ainda - trabalham noite e dia - alguns grupos de moinhos. E esta engenhoca seduz-me: anima a paisagem e tem alguma coisa de navio e de brinquedo de criança.

Faz-se tarde. No fundo mais negro, as casas, mais pálidas, embranquecem: só o milho fica loiro e o céu fica doirado. (...) Esposende, terra de beira-mar, donde não consigo ver o mar, terra de tristes pescadores. As redes de arrasto deram cabo do peixe, matando a criação. Só resta uma catraia para a pescada, alguns batéis para a raia, com redes de malha muito larga, e diferentes barquinhos para a pesca do rio, que dá o sável, a tainha e o robalo na vazante, e a solha que se fisga com a petada nos fundos de areia mais escura."

Os Pescadores / Raul Brandão. Porto: Porto Editora, 2010
Imagem: Copyright - praia de Belinho: C.M. de Esposende

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