sexta-feira, 29 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXIX - 3.º Ciclo)

"Laranja Helena sacudiu-se no seu ramo:
- Estarei pronta, maninhas? - perguntou.
As irmãs afinavam com este tratamento. Tinham ouvido o jardineiro da Câmara dizer a um miúdo que as ervas daninhas arruinavam tudo e tendo confundido "Daninho" com "Maninho" ficaram com horror a tal palavra. Então de cada vez que Laranja Helena lhe chamava "Maninhas" a perguntar se já estaria pronta, as irmãs só pensavam em vingar-se e respondiam sempre:
- Agora pronta! Ainda és uma criança! Olha para as tuas bochechas: verdes que nem alfaces! Bebe sol, be sol!

Laranja Helena estendia-se o mais que podia - e não podia muito, pois era redondinha - e toca de sorver o sol do outono sempre que ele conseguia atravessar as nuvens. Chupava os raiozinhos - chlop. chlop, - até ficar com a barriga cheia. Inchada não direi, porque Laranja Helena já era por natureza completamente redonda, mas... a sentir-se inchada, com uma indigestão de sol, se bem me entendem.
- Estarei pronta, maninhas? Estarei pronta?

Queria era saltar para a rua e correr mundo. Mas as irmãs, zangadas com o "maninhas", iam e respondiam:
- Qual pronta nem meio pronta! Só se fosses limão!
- Estás amarelinha que pareces doente. Toma sol, toma sol!

O que estava a tornar-se cada vez mais difícil porque vinha o inverno e o próprio sol, em vez de alaranjado, andava pálido como se tivesse adoecido com alguma gripe. Laranja Helena bem chupava - chlop. chlop - mas, em vez de fortalecer-se, enfraquecia. Passou por lá um melro e disse:
- Oh, que laranja tão apetitosa! Bastante mais madura que as irmãs!
- Madura, eu? - disse Laranja Helena muito, muito pasmada. - Estás a troçar de mim?

O melro não gostava que lhe dissessem aquilo. Tinha a mania da verdade e do prestígio. Quando ele falava, queria ser escutado e ser seguido sem a menor dúvida. Vai, deu uma bicada na Laranja.
- Ai, ai - chorou-se Helena, bastante apoquentada. - Não compreendo a vida. Vou é deixar-me apodrecer aqui.
 
As irmãs e o melro tiveram pena dela.
- Quem te disse que não estavas madura? - perguntou ele, a chilrear um pouco.
- Foram as minhas irmãs - respondeu Laranja Helena a soluçar.
- Que disparate foi esse? - disse o melro às irmãs, fazendo voz de juiz. Devo dizer que o melro adorava estas coisas.
- Bom, isto é... - começaram as irmãs. - Ela chama-nos nomes muito feios. "Maninha" quer dizer; que só faz mal, que destrói tudo em volta, coisa assim.
- É? - hesitou o melro, que não possuía grande vocabulário.
- Que ideia! - indignou-se Laranja Helena. - "Maninhas" quer dizer"manas", "irmãs". Nunca ouviram falar em diminutivos?
- É - repetiu o melro, atrapalhado- Nunca ouvira falar, mas não o confessou. 
 Vão ser ao dicionário, ignorantes! - disse Helena, sentido que podia desforrar-se. - Vejam no "D" e no "M", e peçam-me desculpa!...

Na laranjeira não havia dicionário. O melro ofereceu-se para ir buscar um. Pelo caminho aproveitou para ver os significados de "Daninhos" e de "Maninho". Quando voltou à árvore vinha mais confiante.
- Bem - disse ele -, eu trouxe o dicionário mas nem vale a pena vocês verem. Eu posso explicar perfeitamente. "Daninho" quer dizer "que causa dano" e "Maninho" quer dizer "estéril, inculto" e é também o diminutivo de "Mano", que por sua vez é uma palavra familiar para "Irmão".

O melro pigarreou e inclinou a cabeça À espera de que o aplaudissem. Mas havia um silêncio gravíssimo à sua volta.
- O que quer dizer "esterilinculto"? - perguntaram finalmente as irmãs Laranjas, que eram desconfiadas.
- Ai! - exclamou o melro, olhando para o relógio. - Está na hora da minha aula de canto. - E toca de voar antes que lhe fizessem mais perguntas.
Laranja Helena começou a pentear-se e a vestir o casaco.
- Obriga, maninhas - disse, a rir. - Graças a um equívoco, vocês obrigaram-me a tomar tanto sol que já estou mais que pronta para ir correr mundo. Enquanto as maninhas, coitaditas, estão ainda tão necessitadas de luz e de calor para alaranjar e á é inverno!...
- O que é equívoco? - perguntaram as irmãs.
Mas já Laranja Helena ia, saltinho aqui, pulinho ali, coradinha e lustrosa que dava gosto vê-la, a correr o seu mundo.

A luz de Newton / Hélia Correia. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagem: blog: plantei.br

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