terça-feira, 5 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XI-3.º Ciclo)

"Nessa escuridão de melodia doce ou silêncio quente, entre zumbidos de mosquitos e o cheiro dos fósforos a acender a primeira vela dentro de casa, ganhei coragem na voz e falei: - Tu não achas que as pessoas são uma coisa tão bonita?

Ela não disse nada, nada mesmo, mas também eu não estava certo de uma resposta possível.
Nessa ausência de luz, ela ilhava para mim, numa travessia de escuridão e cheiros. Tinha uns olhos bonitíssimos e continuava em silêncio.
Olhei numa outra direção, cheia de estrelas no céu azul-escuro. O Universo é enorme, pensei, e as pessoas também.
Ela fez-me uma festinha rápida na mão. Gesto ou ternura de amansamento.
Afinal uma pessoa também pode dizer coisas sem ser com voz de falar. Foi a primeira descoberta assim estranha que eu fiz nessa noite duna bendita, bonita, falta de luz.

O silêncio é uma esteira onde nos podemos deitar.
Esteira de poeira cósmica, se eu olhar de novo o céu escuro. Esse azul do céu me lembra o chão do mar. Um mar, afinal, é só um desero molhado, em vez de homens e camelos, tem peixes e canoas a passear nele. 
O deserto é parecido com o mar: o mar é parecido com o Universo cheio de estrelas pirilampas. 
O deserto podia caber no peito do mar, o mar podia caber no corpo do Universo, o Universo só pode caber no coração das pessoas. (...)

Vendo o avião voar alto, eu acreditava ver um pirilampo a estrear os céus. Um pirilampo desses que enchem os depósitos de luz das estrelas. É assim que todas as noites o Universo inventa desenhos usando candeeiros que nunca se apagam. Num susto quase pouco, ela fez-me uma festinha lenta na mão. Ternura e gesto de amansamento.

- Vou te contar um segredo - ela começou.
- Conta - perdi o pirilampo de vista.
- Dizem que quando um silêncio chega e fica entre duas pessoas...
- Sim?
- É porque passou um anjo e lhes roubou a voz.
- Tu acreditas em anjos?
- Tu não acreditas em silêncios? 

Fosse de esquecimento ou não, a mão dela tinha ficado ancorada na minha, concha e búzio nesse silêncio inventado pelos anjos. No brilho aceso do Universo, um candeeiro-estrela alumiou mais forte que os outros . em celebração de ofuscamento.

- Os "desejos de estrelas" podem ser falados?
- Sim. Sentes um?
- Mas não é fácil. Desejava um arco-íris mesmo agora.
- No céu escuro ninguém consegue desenhar um arco-íris.
- Eu acho que os anjos que roubam vozes conseguem...... Eu queria um arco-íris, de presença bem noturna, tipo uma ponte.
- Uma ponte?
- Para o outro mundo. E vice-versa. Para chamarmos quem tivesse partido ainda em hora de cá estar. Assim o teu pai podia voltar. E também as crianças de todas as guerras."

Uma escuridão bonita / Ondjaki, il. António Jorge Gonçalves. Alfragide: Caminho, 2013.

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