"A verdade é que, estando nós prestes a penetrar nesta floresta e pensando que podemos aqui falar alto e bom som, rir à gargalhada e chamarmos uns pelos outros, não é verdade! Estranhas sensações comandam as nossas atitudes, todos os nossos gestos, todas as intenções. A floresta é densa, todas as cores existem aqui. O coração palpita quando a floresta exige, quando a floresta ordena.
É aqui que o sagrado e as artes se reúnem para celebrar a vida e para respeitar a morte: a antiquíssima música produzida pelo vento ou pelas aragens ao escolherem as mais altas copas das mais altas árvores para as inquietar, produzindo ora assobios, ora variações de acordes longínquos ou próximos, doces ou aflitivos com o piar do pássaro, a brama do veado ou o aviso da tempestade; a pintura, com seus matizes variando com a elegância e sabedoria nas quatro estações do ano, conferindo todas as cores possíveis ao chão, às plantas, ao céu, aos próprios bichos; a escultura da natureza a formar e a deformar, a diminuir ou a acrescentar particularidades aos ramos e aos troncos das árvores, às rugosidades das pedras e calhaus dos ribeiros, às hastes de alguns animais que caem ou não caem.
É como se estivéssemos a entrar num local de culto, num santuário misterioso, frio e quente, escuro e claro, algures, onde o imprevisto pode sempre acontecer. Avançamos pelo interior deste verde total como se caminhássemos pela nave central de um grande templo, ao mesmo tempo silencioso e murmurante. Percebemos, então, uma língua de luz estreita e fina, uma passagem para um outro mundo, iluminado por outra luz, aquecido por outro calor.
A vida em centelhas, em pós cintilantes que se evolam no ar em espirais de fendas e buraquinhos aqui e além. São partículas animadas e parece que esvoaçam, acabando por desfazer-se em névoa que se arredonda e acena mesmo à frente dos nossos olhos. É chão de terra macia, debruado por árvores enormes com cabeleiras de verde, com corpos de troncos muito fortes, de braços abertos e amplos, sempre prontos a abraçar. E em cada braço de árvore correm rios de seiva e sangue e líquidos que alimentam e fazem vibrar todo o restante corpo das árvores.
Deveremos manter o silêncio para não perturbar a densidade da floresta e toda a sua vida"
As fabulosas histórias da tapada de Mafra / Cristina Carvalho. Porto: Sextante Editora, 2016.
Imagem: Copyright - [남일 풍경수채화 시범작품] 숲길 - 수채화 과정
A vida em centelhas, em pós cintilantes que se evolam no ar em espirais de fendas e buraquinhos aqui e além. São partículas animadas e parece que esvoaçam, acabando por desfazer-se em névoa que se arredonda e acena mesmo à frente dos nossos olhos. É chão de terra macia, debruado por árvores enormes com cabeleiras de verde, com corpos de troncos muito fortes, de braços abertos e amplos, sempre prontos a abraçar. E em cada braço de árvore correm rios de seiva e sangue e líquidos que alimentam e fazem vibrar todo o restante corpo das árvores.
Deveremos manter o silêncio para não perturbar a densidade da floresta e toda a sua vida"
As fabulosas histórias da tapada de Mafra / Cristina Carvalho. Porto: Sextante Editora, 2016.
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