"A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, um mundo. O rumor das ondas, o perfume do sal, o vidrado da luz marinha, o ar varrido de brisas e vento, a cal do muro estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuoso e limpos onde tudo se abre e vibra.
A casa é construída de pedra e cal e a sua frente está virada para o mar.
No andar de cima da fachada há três janelas e uma varanda com grades de madeira. No andar de baixo há três janelas e uma porta. Essa porta, as janelas e as grades da varanda estão pintadas d e verde. No chão, ao longo da parede, corre um passeio de pedra que separa a casa das areias da duna. (...)
Entre a casa e a cidade longínqua estendem-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem também os lírios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias.
Dentro da casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar.
A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir de louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa - é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelho. Nela cada coisa é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada. (...)
Nas paredes brancas reflecte-se uma grande claridade de areal e o sabor das algas, como um grito de contínua alegria, invade todos os espaços, gavetas, armários, roupas, caixotes, livros. Aqui, de manhã, se é acordado por um marulho de vaga e o dorso do mar coberto de brilhos cintila entre as persianas como um peixe na rede. O fulgor exterior assedia as orlas da penumbra. No centro vazio do quarto pode-se dançar. Os gestos deslizam entre o animal e a flor como medusas.
E, às vezes, de súbito, uma gaivota atravessa, sem o quebrar, o vidro dos espelhos. Porém, como um jardim Zen, o quarto é também um lugar de contemplação. A luz é lisa. O espaço está atento, o silêncio imóvel. Mas esse silêncio e essa atenção recebem em si a larga respiração oceânica que no quarto implanta seu tumulto ébrio e lúcido. (...)
Mas quem do quarto central avança para a varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra o seu rosto e sua evidência.
Pelo gesto de dobrar o pescoço e de sacudir as crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no contínuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. O tombar da rebentação povoa o espaço de exultação e clamor. No subir e descer da vaga, o universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzidias, maresias e brumas sobem como um incenso de celebração.
E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado."
"A casa do mar", in Histórias da Terra e do Mar / Sophia. Porto: Figueirihas, 2006.
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