Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então.” (1)
As pequenas memórias, como espaço de infância é um território já afastado de nós, estranho à nossa dimensão de seres trabalhados no tempo e onde a viagem está já marcada por esse pó que se levanta dos dias. Escrever da infância é sempre regressar ao milagre da descoberta dos primeiros passos, do olhar que ficou marcado nos gestos, nos encontros, nas pessoas, nos objectos que reivindicam uma pequena imortalidade. A memória é também uma reconstrução desse tempo e nesse sentido do que foi a infância.
Em Pequenas Memórias José Saramago reescreve esse tempo, em que procurou integrar um espaço social, económico e cultural. As suas memórias terminam na adolescência, pois a construção da infância, a emersão nesse território por onde entrou no mundo aí fazem terminar a fantasia desse olhar. Biografia, uma biografia sua já não teria o mesmo significado. Em Pequenas Memórias, Saramago recorda o processo de reconstrução da imagem da infância, pelo que foi, pelo que foi encontrado de particular e de original nessa festa que é sempre a chegada de uma criança.
Em Pequenas Memórias não recebemos ainda os elementos que confirmaram Saramago com um escritor. Apesar do seu sucesso educativo como aluno, é o olhar, os ambientes, as sombras, as pessoas, os dilemas de vida que forjam as suas representações do mundo. José Saramago descobriu-se como grande leitor mais tarde e a sua escrita conduz às palavras, essa imaginação das possibilidades, que desde criança o colocou nesse confronto com o quotidiano.
As Pequenas Memórias explicam-no como pessoa e aproximam-nos de uma ironia de pensamento com que povoou os seus livros. A recriação do real, a ousadia das abordagens, as polémicas que manteve foram formas de construir as paisagens humanas, que desde cedo conheceu e quis transformar. A memória é também em Saramago, uma reconstrução, uma forma de possíveis. Toda a sua obra mergulha na tentativa conquistar o real, por esse olhar que desde cedo procurou trazer uma forma mais justa e questionável de medir o horizonte dos dias.
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