quarta-feira, 16 de março de 2022

Memória de Natália Correia

 

"Creio nos anjos que andam pelo mundo
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,

creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu que houve dantes,

creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,

creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. Amén."

Natália Correia, “Creio nos anjos que andam pelo mundo”, in Antologia Poética.

Natália partiu há perto de trinta anos deste país, ela que nasceu nas ilhas de lava e fogo, para nos dar uma poesia e uma criação da palavra capaz de nomear as coisas, a vida, a memória, as experiências do quotidiano com um ousadia apenas possível para os que buscam a identidade intrínseca do real. Para quem a conheceu, o seu espírito era de uma ousadia permanente. Percebeu antes de todos, que a banalização, a falta de rigor, a ausência de consciência e de memória fariam saltar as mais gritantes formas de injustiça.

Ousou sobre um País cinzento, com paixão, “o corpo do amor”, essencial a qualquer criação, para buscar a inocência perdida das crianças, no espanto inicial de saber olhar. A sua inteligência, a sua ousadia, a sua liberdade criativa serão sempre uma memória do País cinzento, que das praias de lava ousava  o abraço e o beijo de outros encontros, capazes de redimir o Homem.

Escritora, poetisa, participou na luta contra o Estado Novo, tendo tido livros como Canto do País Emerso ou Satírica sido proibidos pela censura. Defendeu como poucos o património da língua portuguesa, na senda da célebre ideia de Pessoa e a importância do património cultural. Fez da sua tertúlia da liberdade um ponto de discussão e promoção de direitos humanos. Falou das mulheres com um sentido mágico, lutando no final dos anos oitenta por ideias essenciais da participação da mulher na sociedade.

Foi deputada, mas nunca se submeteu aos valores da carreira política, naquilo que esse termo tem de pior, tendo a sua vida literária tido pontos de contacto com figuras como António Maria Lisboa ou Cruzeiro Seixas. Natália foi sempre ela própria, onde conciliava conhecimento enciclopédico com os rasgos de originalidade, numa composição de profunda energia. 

Com Dimensão encontrada (1957) e Comunicação (1959) revelou uma exuberância lírica que acompanhava a sátira, onde se notavam o desejo de chegar à utopia, à fantasia, à vida plena que queria usufruir plenamente. Foi umas das mulheres com mais liberdade na voz e com uma inteligência e cultura acima, muito acima do pobre país fechado em convenções.

Morreu num tempo em que esse mundo de uma construção pelo conhecimento, uma sociedade participada caía nos escombros do individualismo. Quem assistiu à declamação das suas poesias, percebe como só da pátria de lava e fogo se poderia fazer nascer uma voz tão livre e tão próxima do coração da terra. Foi precoce até nisso, na compreensão da desventura das escolhas que tornariam o País, um espelho à deriva de um liberalismo sem ideal social e cultural. O seu botequim da liberdade deu conta desse caminho perdido às portas de um sentido justo das coisas.

 

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