terça-feira, 8 de março de 2022

Leitoras...

No dia internacional da mulher falar no feminino de esperanças e direitos é falar também de livros e, em particular, de leitoras. 
Todos vivemos e construímos um imaginário feito de esperanças, desejos, possibilidades. Naquilo que cada um formaliza, que cada um vive e sonha, cria e aspira desenha-se uma Biblioteca Imaginária, que somos nós. A História da Biblioteca Imaginária formaliza-se nos leitores, nas suas construções intimistas, mas também nos escritores, nesses desejos de reerguer possibilidades, como visíveis linhas de um real. Na História da Leitura os rostos foram sempre mais os femininos. Neles se construíram na intimidade possibilidades de novos quadros sociais e culturais. Falemos um pouco dessa viagem das leitoras.

Ossip Mandelstam foi um dos poetas russos que sucumbiu ao regime dos camaradas, aí, onde toda a palavra era um argumento de traição, embora eles próprios não soubessem nunca muito a quê. Os seus breves poemas foram queimados, mas Nadeshda, sua mulher registou-os todos mentalmente e voltou a escrevê-los e preservou-os. Ela que escreveria “Hope against Hope” na denúncia do regime comunista de Estaline fez aquilo que mais importa a um leitor, registar na memória as palavras impedidas de nascer ao sol, à respiração das coisas.

O feito de Nadeshda Mandelstam foi o de ser uma leitora, uma criadora de uma Biblioteca Imaginária. Os leitores, mas sobretudo as leitoras têm desempenhado essa missão generosa de guardar tesouros, de os partilhar com os outros. Às vezes algo interrompe essa generosidade por uma outra. Chamam-lhe amor, mas sendo ele tanto de sedução e fragilidade, há quem considere que o amor na literatura é mais perene, talvez mais feliz. Às vezes o amor suspende as lutas políticas, ultrapassa-as. O Doutor Jivago mostra-nos isso, também de um escritor russo a compor um fresco sobre a transformação política e o modo como as pessoas se envolvem, se definem entre si. 

Outro escritor russo, Boris A. Lavrenev escreveu “O Quadragésimo Primeiro”, narrativa entre dois opositores na grande estepe russa, um homem e uma mulher em campos opostos da disputa política. O amor quase supera essa diferença. Ela acaba por matá-lo, pois a consciência de classe é uma mortalha para espíritos burocráticos. Elke Heidenreich quando nos contou este episódio diz-nos algo sobre essa diferença entre leitores e leitoras. Antes do fim, um pequeno livro de poemas que ela escreveu serve de mortalha para os desejos que ele tem em fumar. Ela perde os seus poemas, todas as palavras desfeitas em fumo e cinzas. O inverso sucederia? Dar-lhe ia ele os seus poemas para as suas mortalhas? Talvez não. Ele talvez exigisse os seus poemas perto do coração.

A história permite-nos concluir que sendo as mulheres leitoras de uma frequência maior que os homens estarão numa postura de maior dádiva e disso deriva um temor masculino. O de que mulheres leitoras são uma forma de ser que é temido, por tudo aquilo que a leitura concede. A História cultural e social dos últimos séculos rapidamente nos assegura que foram elas a desbravar páginas para construir na intimidade outras formas de conhecer e de ser. Os exemplos na arte e em especial na pintura são muito evidentes.

Vittorio Matteo Corcos pintou um quadro que denuncia esta ideia de que as palavras pelo feminino desencadearam uma chama capaz de outras possibilidades, de um outro real. A imagem não nos revela uma leitora a ler, mas sim, observamos a construção mental das ideias, as palavras lidas a construir desejos e sonhos. Os livros que a acompanham são vários e isso transmite a ideia de uma procura larga pelo conhecimento, por uma luz capaz de desbravar quotidianos num outro sentido. Há na sua expressão um desafio de quem compreendeu que do seu hábito de leitura nasceu um desafio, uma determinação, a capacidade de romper com uma atitude, quase um nascimento.

Imagem: Vittorio Matteo Corcos, Sonhos, 1896, Galeria Nacional de Arte Moderna, Madrid
Fonte: Elke Heidenreich, “Do perigo de as mulheres lerem demasiado”, in Stefan B0llmann, Uma história da leitura desde o século XIII ao século XXI, Círculo de Leitores, Lx: 2005.

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