quinta-feira, 16 de abril de 2020

Na memória de Luís Sepúlveda


 Luís Sepúlveda deixou-nos uma obra que vale muito como um exemplo de resistência pelos sonhos e pela descoberta de territórios esquecidos. Da sua obra é visível uma ética sobre os valores humanos, capaz de dar voz ao esquecimento e o que mais importa na vida.  Um excerto do último livro que publicou. Obrigado por tantas aventuras em tantos movimentos fascinantes pelo natural.

“Numa manhã do verão austral de 2014, muito perto de Puerto Montt, no Chile, uma baleia encalhou a costa de seixos. Era um cachalote de quinze metros de comprimento e o seu corpo, de uma estranha cor cinzenta, não se movia.
Alguns pescadores acharam que talvez se tratasse de um cetáceo desorientado; outros sugeriram que, provavelmente, tinha ficado intoxicado com todo o lixo que se atira para o mar. E um silêncio carregado de tristeza foi a homenagem de todos os que rodeávamos o grande animal marinho sob o céu do Sul do Mundo.
O cachalote ficou ali umas duas horas, embalado suavemente pelas ondinhas da baixa-mar, até que uma embarcação se aproximou, fundeou a pouca distância e alguns homens se atiraram à água, munidos de cordas grossas que amarraram  à barbatana caudal, ou cauda do animal, e depois, muito lentamente, a embarcação deu a proa ao sul, arrastando o corpo sem vida do gigante marinho.
   - O que farão com a baleia? – perguntei a um pescador que, com o seu gorro de lã nas mãos, via afastar-se a embarcação.
   - Respeitá-la . Quando chegarem ao mar alto, passada a saída sul do golfo, abrem-lhe o corpo, esvaziando-o para que não flutue, e deixam-na afundar-se na escuridão fria do oceano – respondeu em voz baixa o pescador.
   Depressa a embarcação e a baleia desapareceram entre o perfil incerto das ilhas, e as pessoas afastaram-se da costa. Mas ficou um menino, a olhar fixamente para o mar.
   Aproximei-me dele. Os seus olhos de pupilas escuras prescrutavam o horizonte e duas lágrimas desciam-lhe pelo rosto.
   - Eu também estou triste. És daqui? – perguntei, em jeito de cumprimento.
   O menino sentou-se na praia de seixos  antes de responder, e eu fiz o mesmo.
   - Claro. Sou lafkenche. Sabes o que significa? – perguntou.
   - “Gente do mar” – respondi.
   - E tu, porque estás triste? – quis saber o menino.
   - Por causa da baleia. Que lhe terá acontecido?
   -- Para ti é uma baleia morta, mas para mim é muito mais do que isso. A tua tristeza e a minha não são iguais.
   Permanecemos em silêncio durante um tempo medido pelas ondas que iam e vinham, até que ele me ofereceu um objeto maior do que a sua mão.
   Era uma concha de loco, um caracol marinho muito apreciado, com uma concha exterior rugosa, pétrea, e o interior branco como uma pérola.
   - Encosta-a ao teu ouvido e a baleia falará contigo – disse o pequeno lafkenche, afastando-se com grandes passadas pela praia escura de calhaus.
   Foi o que fiz. E, sob o céu cinzento do Sul do Mundo, uma voz falou comigo na velha língua do mar."

História de uma baleia branca / Luís Sepúlveda. Porto: Porto Editora: 2019

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