sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Minutos de leitura

No tempo em que ainda trepava às árvores - há muitos, muitos anos, há dezenas de anos atrás, media pouco mais de um metro, calçava o número vinte e oito e era tão leve que podia voar - não, não estou a mentir, naquele tempo eu podia de facto voar - ou, pelo menos, quase,ou melhor dizendo: naquela altura teria realmente conseguido voar, se de facto o tivesse querido fazer e se verdadeiramente o tivesse tentado, pois... pois lembro-me com exactidão de que uma vez não voei por um triz, era precisamente no Outono, no meu primeiro ano de escola, quando voltava das aulas para casa e soprava um vento bastante forte, eu conseguia apoiar-me nele sem cair, sem abrir os braços, e tão inclinado como um saltador de esqui, ou ainda mais inclinado... e então quando chocava contra o vento nos prados ao descer a colina da escola - porque a escola ficava numa pequena colina fora da aldeia - e conseguia elevar-me um pouco acima do chão e estendia os braços, o vento levantava-me e eu podia sem esforço dar saltos de dois, três metros de altura e  de dez, doze metros de comprimento - ou talvez não tão compridos nem tão altos, que importância tem isso! (...)
 
Com o trepar às árvores era mais ou menos a mesma coisa: subir não apresentava a menor dificuldade. Viam-se os ramos à nossa frente, experimentavam-se com as mãos, e podia avaliar-se da sua robustez antes de nos içarmos e de lhes pormos os pés em cima. Mas na descida não se via nada, e tinha de se tactear com o pé, mais ou menos às cegas, os ramos de baixo, antes de se poder encontrar um apoio firme, e muitas vezes o apoio não era suficientemente firme mas sim podre e viscoso, e ou se escorregava ou ele quebrava, e quando não nos agarrávamos bem a um ramo com ambas as mãos, caíamos ao chão como uma pedra, obedecendo às chamadas leis da gravidade, que o investigador italiano Galileu Galilei descobriu há quase quatrocentos anos, e que ainda hoje estão em vigor. (...)
 
Portanto, no tempo em que ainda trepava às árvores - e eu trepava muito e bem, nunca caía! Até conseguia trepar às árvores que ainda não tinham ramos em baixo  e às quais se tinha de subir pelo tronco nu, e conseguia também saltar de uma árvore para outra, e construía inúmeros refúgios no topo, uma vez até fiz uma autêntica casa com telhado e janelas e alcatifa, no meio da floresta, a dez metros de altura - ah, creio que passei a maior parte da minha infância em cima das árvores, comia e lia e escrevia e dormia em cima das árvores, lá aprendi o vocabulário inglês e os verbos irregulares latinos e fórmulas matemáticas e leis físicas, como, por exemplo, a mencionada lei da gravidade de Galileu Galilei, tudo em cima das árvores, fazia os meus trabalhos de casa orais e escritos em cima das árvores, e com prazer urinava do cimo das árvores, fazendo um arco ruidoso e alto através da ramaria.
 
A história do senhor Sommer / Patrick Süskind; il. Sempé. Lisboa: Sextante Editora, 2007.


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