A Festa
Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o
Natal.
E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os
seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto
e desceu a escada.
Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram
as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado
a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam
os copos.
(…)
Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão
frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha
do que do fundo de um armário. As velas estavam acesas e a sua luz atravessava
o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas
de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas
encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.
Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de
Natal as estrelas são diferentes.
Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio,
mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras
tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro
tinha os seus ramos cobertos.
E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e
redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que
tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas coisas brilhantes:
velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas no céu havia uma festa
maior, com milhões e milhões de estrelas.
Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava em
nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e luminoso, sem
nenhuma sombra.
Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito
tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a atravessar o
corredor.
— Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então Joana
foi à cozinha ver a cozinheira
Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas
coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e
mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela
conhecia.
A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os
dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito
esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.
— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.
A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os
perus.
— O que é? — perguntou ela.
— Que presentes é que achas que eu vou ter?
— Não sei — disse Gertrudes — não posso adivinhar.
Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e
por isso continuou a fazer perguntas.
— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?
— Qual amigo? — disse a cozinheira.
— O Manuel.
— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.
— Não vai ter presentes nenhuns!?
— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.
— Mas porquê, Gertrudes?
— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
— Isso não pode ser, Gertrudes.
— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do
forno.
Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que
era «assim mesmo».
Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as
manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da
fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E
há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze
da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava
dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as
histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer
todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e
de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.
Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira.
Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.
De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:
— Já chegaram os primos.
Então Joana foi ter com os primos.
Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos
para a mesa.
Tinha começado a festa do Natal.
Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa
tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas
doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom Natal». Os copos
tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana
pensava:
— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa
para toda a gente.
Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também
tem presentes.
E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão
alegre como antes.
O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.
Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os
perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.
No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a
porta e entraram na sala.
As luzes elétricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do
pinheiro.
(…)
E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José,
a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido
interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia.
Joana olhava, olhava, olhava.
Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.
(…)
E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a
Gertrudes.
— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.
— Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento.
Depois perguntou:
— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?
— O que é que eu disse?
— Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os
pobres não têm presentes.
— Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve
presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são
os pobres. Têm a pobreza.
— Mas então o Natal dele como foi?
— Foi como nos outros dias.
— E como é nos outros dias?
— Uma sopa e um bocado de pão.
— Gertrudes, isso é verdade?
— Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se
fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.
— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de
Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:
— Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e
qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel
ninguém deu nada.
E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se
a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal
naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.
«Que frio lá deve estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde
Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um
burro.
— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois
suspirou e pensou:
«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»
Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a
rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao
longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze
pancadas da meia-noite.
«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora,
esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»
Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola,
na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele
era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.
Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por
um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a
ouviu.
(…)
A
noite de Natal / Sophia de Mello Breyner Andresen.
Ilustrações de Maria Keil.