O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na agua pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a agua do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra de uma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma…”
Fernando Pessoa é um dos marcos da cultura portuguesa e a sua modernidade trouxe para a compreensão do mundo, aquilo que é uma das marcas do mundo contemporâneo. O poema "chuva oblíqua" devolve-nos a construção de uma imagem, a da chuva que se apresenta inclinada e que impede que as pessoas se dela possam desviar. Há assim uma intersecção de planos, o real e o imaginário, num cruzamento de elementos. O poema relaciona-se muito com o quadro de Almada Negreiros, "Retrato de Fernando Pessoa" nessa construção de uma realidade fragmentada em planos. Que mais não é que o da própria vida num tempo de sociedade profundamente alterado e angustiado.
“Chuva Oblíqua”, in Poemas Interseccionistas de Fernando Pessoa, 1914, in Orpheu 2, junho de 1915, pp. 160-161.
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