quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Um poema - palavras para um milagre


“Toda a miséria, toda a brutalidade deveriam ser interditas como insultos ao belo corpo da humanidade. Toda a iniquidade era uma nota falsa a evitar na harmonia das esferas. (…) Toda a felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a. A menor deselegância desfeia-a, a menor estupidez embrutece-a. (…) alguns homens pensarão, trabalharão e sentirão como nós; ouso contar com esses continuadores colocados a intervalos irregulares ao longo dos séculos, com essa intermitente imortalidade. 

A vida é atroz, sabemos isso. Mas precisamente porque espero pouco da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços de recomeço e de continuidade parecem-me outros tantos prodígios que compensam quase a massa enorme dos males, dos fracassos, da incúria e do erro. (…) As palavras liberdade, humanidade, justiça reencontrarão aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhe. (1)

Um pé na erudição, outro na magia, ou, mais exatamente e sem metáfora, nesta magia simpática que consiste em nos transportarmos em pensamento ao interior de alguém. (…) é somente por orgulho, por ignorância grosseira, por cobardia, que nos recusamos a ver, no presente, os lineamentos das épocas que hão-de-vir. Aqueles livres sábios do mundo antigo pensavam como nós em termos da física ou de filologia universal: encaravam o fim do homem e a morte do globo.
 Plutarco e Marco Aurélio não ignoravam que os deuses e as civilizações passam e morrem. (…)

Este século I interessa-me porque foi, durante muito tempo, o dos últimos homens livres. Nada mais frágil que o equilíbrio dos lugares belos. As nossas fantasias de interpretação deixam intactos os próprios textos, que sobrevivem aos nossos comentários; mas a menor restauração imprudente infligida às pedras, a menor estrada macadamizada cortando um campo onde a erva crescia em paz desde há séculos criam para sempre o irreparável. A beleza afasta-se, a autenticidade também.”

(1) – Memórias de Adriano / Marguerite Yourcenar. Lisboa: Ulisseia, 2014. 
(2) – (do conjunto dos apontamentos das diversas edições da obra).

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