quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Um poema - Coração Habitado

Na lembrança de uma humildade feita em sabedoria e em palavras, como planaltos de emoção. Eugénio de Andrade!

De um tempo, onde entre silêncio e vento, ele próprio deambulava por esse nome da tarde que ele dava à cidade das camélias, o Porto, como um refúgio de pássaros. Ele que buscava as palavras com aquela ideia telúrica e desassossegada de construir um olhar na cidade. E do jacarandá da praça o vimos entoar passos, velhos um pouco como ele e a guardar no coração as lágrimas dos miúdos escondendo do azul a sua melancolia. Corria a Ribeira, a Sé e o Jardim do Passeio Alegre, a meio caminho da Foz para em cada praça, ou rua aprender a ser árvore e entoar com os pardais palavras de silêncio e pedaços de vida. E entre os muros de granito imaginava palavras tão solares como a claridade desenhada em tardes de Primavera. Eugénio criou um imaginário do Porto e houve um tempo em que era fácil encontrá-lo e descobri-lo e essa era uma cidade fascinante, onde o corpo e a alma alimentaram a sua pureza e o seu minimalismo.

 "Aqui estão as mãos. 

São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui: 
frescos, matinais, quase de orvalho, 
de coração alegre e povoado. 

Ponho nelas a minha boca, 
respiro o sangue, o seu rumor branco, 
aqueço-as por dentro, abandonadas 
nas minhas, as pequenas mãos do mundo. 

Alguns pensam que são as mãos de deus 
— eu sei que são as mãos de um homem, 
trémulas barcaças onde a água, 
a tristeza e as quatro estações 
penetram, indiferentemente. 

Não lhes toquem: são amor e bondade. 
Mais ainda: cheiram a madressilva. 
São o primeiro homem, a primeira mulher. 
E amanhece."

"Coração Habitado", in Até Amanhã. Porto: Assírio &Alvim, 2012.  
Imagem: Copyright - "Silent Cradle", Natalia Drepina 

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