segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

leituras de dezembro

Título: A estrela
Autor: Vergílio Ferreira
Edição: 1ª
Páginas:34
Editor: Quetzal
ISBN:  978-972-564-833-9

"Um dia, à meia-noite, ele viu-a. Era a estrela mais gira do céu, muito viva, e a essa hora passava mesmo por cima da torre. Como é que a não tinham roubado? Ele próprio, Pedro, que era um miúdo, se a quisesse empalmar, era só deitar-lhe a mão. Na realidade, não sabia bem para quê. Era bonita, no céu preto, gostava de a ter. Talvez depois a pusesse no quarto, talvez a trouxesse ao peito. E daí, se calhar, talvez a viesse a dar à mãe para enfeitar oi cabelo. Devia-lhe ficar bem, no cabelo.

 De modo que, nessa noite, não aguentou. Meteu-se na cama como todos os dias, a mãe levou a luz, mas ele não dormiu. Foi difícil, porque o sono tinha muita força. Teve mesmo de se sentar na cama, sacudir a cabeça muitas vezes a dizer-lhe que não. E quando calculou que o pai e a mãe já dormiam, abriu a janela devagar e saltou para  a rua. A janela era baixa. Mas mesmo que não fosse. Com sete anos, ele estava treinado a subir às oliveiras quando era o tempo dos ninhos, para ver os ovos ou aqueles bichos pelados, bem feios, com o bico enorme, muito aberto. 

E se não era o tempo dos ninhos, andava à solta pela serra, saltava os barrancos, jogava mesmo, quando preciso, à porrada com o um homem. Assim que se viu na rua, desatou a correr pela aldeia fora até à torre, porque o medo vinha a correr também atrás dele. Mas como ia descalço, ele corria mais. A igreja ficava no cimo da aldeia e a aldeia ficava no cimo de um monte. De modo que era tudo a subir. Mas conseguiu - e agora estava ali. Olhou a estrela para ganhar coragem,  ela brilhava, muito quieta, como se estivesse à sua espera. 

E de repente lembrou-se: se a porta estivesse fechada? Levantou-se logo, foi ver. A torre era muito alta e tinha uma porta para a rua. Pedro empurrou-a um pouco e viu que estava aberta. Ficou muito admirado, mas depois nem por isso. Ninguém ia roubar os sinos que mesmo eram muito pesados. E quanto ás estrelas, se calhar ninguém se lembrava de que era fácil empalmá-las. E tão contente ficou de aporta estar aberta, que só depois se lembrou de a ter ouvido ranger. E então assustou-se. Voltou a experimentar e rangeu outra vez. Rangia pouco, mas o silêncio era muito e parecia por isso que também a porta rangia muito. E teve medo. Reparou mesmo que estava a suar e não devia ser da corrida, porque este suor era frio. 

A porta ficara já deslocada e agora era  só encolher-se um pouco e passar. Mas sem tocar na porta, para não ranger. Meteu-se de lado e entrou. Havia um grande escuro lá dentro. Já calculava isso, mas as coisas são muito diferentes de quando só se calculam. E cheirava lá a ratos, a cera, às coisas velhas que apodrecem na sombra. Como estava escuro, pôs-se a andar às apalpadelas. Mas as pedras frias assustaram-no. Lembravam-lhe mortos ou coisas assim. (…) Mas, à medida que ia subindo, vinha lá de cima um fresco que aclarava o cheiro. À última volta da escada em caracol, olhou ao alto o céu negro, muito liso. Via algumas estrelas, mas era tudo estrelas velhas e fora de mão. Até que chegou ao campanário e respirou fundo. Aproveitou mesmo para puxar as calças que estavam a cair.  Eram dois sinos e uma sineta. (…) E assim que se pôs em terra, largou para casa, mas não muito depressa. Apetecia-lhe mesmo parar de vez em quando e olhar a estrela com uma atenção especial. Era formidável. 

Lembrava um pirilampo, mas muito maior. Oh, muito maior. E de outro feitio, já se vê. A certa altura, voltou-se para trás e olhou ao alto o sítio donde a despegara, como se para ver se realmente já lá não estava. E não. O que lá estava agora era um buraco escuro, por sinal bem feito. Lembrava-lhe a boca dele quando lhe caiu um dente, mas não sabia bem porquê. Quando por fim chegou a casa, trepou á janela que deixara aberta e meteu-se na cama. Estava ainda algum tempo com a estrela na mão, mas não muito, porque já não podia mais, arrombado de sono. De modo que guardou a estrela numa caixa e adormeceu. 

No dia seguinte acordou tarde. A mãe estranhou aquele sono demorado, mas não muito, porque quem passava os dias no retoiço era natural que uma vez por outra pegasse no sono com vontade. Como tinha o berro forte, capaz de ir de monte a monte, a mão ouviu logo. Veio então a correr muito aflita, sem fazer ideia do que fosse, e perguntou-lhe o que tinha. E ele, que estava fora de si, ou mesmo ainda com sono, disse assim:
- Roubaram-ma! Roubaram-ma!

E a mãe, naturalmente, perguntou o que é que lhe tinham roubado. Mas ele aqui calou-se. A mãe cuidou que seriam restos de sonho e não ligou. (…) Mas não tinha sido um sonho, não. O que aconteceu foi que, logo de manhã, assim que acordou, abriu a caixa para ver a estrela e a estrela não estava lá. Ou por outra, estava lá, mas não era a mesma, era assim como uma estrela de lata. E então pensou que lha tinham trocado para pensar qualquer coisa, porque aquilo, realmente, não era coisa que se pensasse. É claro que brilhava um pouco. Mas toda a estrela de lata brilha. O que é, só de dia, quando lhe bate o sol. E mesmo assim, não muito.  Que afinal, com sol todas as coisas brilham com o brilho que é do Sol e não dessas coisas. E a estrela brilhava com  um brilho só dela. Mas nada disse à mãe do que se passara (…)"

Vergílio Ferreira, A Estrela. Quetzal. 2010.

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