Autor: Vergílio Ferreira
Edição: 1ª
Páginas:34
Editor: Quetzal
ISBN: 978-972-564-833-9
Edição: 1ª
Páginas:34
Editor: Quetzal
ISBN: 978-972-564-833-9
De modo que, nessa noite, não aguentou. Meteu-se na cama
como todos os dias, a mãe levou a luz, mas ele não dormiu. Foi difícil, porque
o sono tinha muita força. Teve mesmo de se sentar na cama, sacudir a cabeça
muitas vezes a dizer-lhe que não. E quando calculou que o pai e a mãe já
dormiam, abriu a janela devagar e saltou para a rua. A janela era baixa.
Mas mesmo que não fosse. Com sete anos, ele estava treinado a subir às
oliveiras quando era o tempo dos ninhos, para ver os ovos ou aqueles bichos
pelados, bem feios, com o bico enorme, muito aberto.
E se não era o tempo dos ninhos, andava à solta pela serra,
saltava os barrancos, jogava mesmo, quando preciso, à porrada com o um homem.
Assim que se viu na rua, desatou a correr pela aldeia fora até à torre, porque
o medo vinha a correr também atrás dele. Mas como ia descalço, ele corria mais.
A igreja ficava no cimo da aldeia e a aldeia ficava no cimo de um monte. De
modo que era tudo a subir. Mas conseguiu - e agora estava ali. Olhou a estrela
para ganhar coragem, ela brilhava, muito quieta, como se estivesse à sua
espera.
E de repente lembrou-se: se a porta estivesse fechada? Levantou-se
logo, foi ver. A torre era muito alta e tinha uma porta para a rua. Pedro
empurrou-a um pouco e viu que estava aberta. Ficou muito admirado, mas depois
nem por isso. Ninguém ia roubar os sinos que mesmo eram muito pesados. E quanto
ás estrelas, se calhar ninguém se lembrava de que era fácil empalmá-las. E tão
contente ficou de aporta estar aberta, que só depois se lembrou de a ter ouvido
ranger. E então assustou-se. Voltou a experimentar e rangeu outra vez. Rangia
pouco, mas o silêncio era muito e parecia por isso que também a porta rangia
muito. E teve medo. Reparou mesmo que estava a suar e não devia ser da corrida,
porque este suor era frio.
A porta ficara já deslocada e agora era só encolher-se um
pouco e passar. Mas sem tocar na porta, para não ranger. Meteu-se de lado e
entrou. Havia um grande escuro lá dentro. Já calculava isso, mas as coisas são
muito diferentes de quando só se calculam. E cheirava lá a ratos, a cera, às
coisas velhas que apodrecem na sombra. Como estava escuro, pôs-se a andar às
apalpadelas. Mas as pedras frias assustaram-no. Lembravam-lhe mortos ou coisas
assim. (…) Mas, à medida que ia subindo, vinha lá de cima um fresco que
aclarava o cheiro. À última volta da escada em caracol, olhou ao alto o céu
negro, muito liso. Via algumas estrelas, mas era tudo estrelas velhas e fora de
mão. Até que chegou ao campanário e respirou fundo. Aproveitou mesmo para puxar
as calças que estavam a cair. Eram dois sinos e uma sineta. (…) E assim
que se pôs em terra, largou para casa, mas não muito depressa. Apetecia-lhe
mesmo parar de vez em quando e olhar a estrela com uma atenção especial. Era
formidável.
Lembrava um pirilampo, mas muito maior. Oh, muito maior. E de
outro feitio, já se vê. A certa altura, voltou-se para trás e olhou ao alto o
sítio donde a despegara, como se para ver se realmente já lá não estava. E não.
O que lá estava agora era um buraco escuro, por sinal bem feito. Lembrava-lhe a
boca dele quando lhe caiu um dente, mas não sabia bem porquê. Quando por fim
chegou a casa, trepou á janela que deixara aberta e meteu-se na cama. Estava
ainda algum tempo com a estrela na mão, mas não muito, porque já não podia
mais, arrombado de sono. De modo que guardou a estrela numa caixa e
adormeceu.
No dia seguinte acordou tarde. A mãe estranhou aquele sono
demorado, mas não muito, porque quem passava os dias no retoiço era natural que
uma vez por outra pegasse no sono com vontade. Como tinha o berro forte, capaz
de ir de monte a monte, a mão ouviu logo. Veio então a correr muito aflita, sem
fazer ideia do que fosse, e perguntou-lhe o que tinha. E ele, que estava fora de
si, ou mesmo ainda com sono, disse assim:
- Roubaram-ma! Roubaram-ma!
E a mãe, naturalmente, perguntou o que é que lhe tinham roubado.
Mas ele aqui calou-se. A mãe cuidou que seriam restos de sonho e não ligou. (…)
Mas não tinha sido um sonho, não. O que aconteceu foi que, logo de manhã, assim
que acordou, abriu a caixa para ver a estrela e a estrela não estava lá. Ou por
outra, estava lá, mas não era a mesma, era assim como uma estrela de lata. E
então pensou que lha tinham trocado para pensar qualquer coisa, porque aquilo,
realmente, não era coisa que se pensasse. É claro que brilhava um pouco. Mas
toda a estrela de lata brilha. O que é, só de dia, quando lhe bate o sol. E
mesmo assim, não muito. Que afinal, com sol todas as coisas brilham com o
brilho que é do Sol e não dessas coisas. E a estrela brilhava com um
brilho só dela. Mas nada disse à mãe do que se passara (…)"
Vergílio Ferreira, A Estrela. Quetzal. 2010.
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