Não era propriamente um rapaz novo quando li pela
primeira vez a obra “Cem Anos de Solidão”. Sabendo do meu gosto pelos livros,
já vários amigos me haviam aconselhado a sua leitura. Mas tanto não seria
preciso: o livro em apreço é um daqueles que fazem parte da história da
literatura universal, um dos títulos de que praticamente todos ouviram, em
algum momento, falar. Eu, porém, fui adiando esse momento, como quem guarda
religiosamente um vinho de excelência para uma data especial. Até que um dia
peguei na obra e avancei.
“Muitos anos depois, diante do pelotão de
fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde
remota em que o pai o levou a conhecer o gelo”. Li o primeiro parágrafo e parei
– nunca as primeiras linhas de um livro mexeram tanto com a minha sensibilidade
e condicionaram de forma tão marcante a leitura do que se seguiria. Escusado
será dizer que não descansei até chegar a essa passagem precisa em que um dos
personagens mais determinantes da narrativa foi confrontado com a morte – não
seria, porém, a primeira vez, nem seria a última.
Seguiram-se mais de trezentas páginas de autêntico
deleite literário proporcionado pelas fantasias, tragédias, obsessões,
rebeldias, incestos, adultérios, descobertas e condenações que envolveram a
família Buendia-Iguarán, ao longo de sete gerações, numa torrente incessante de
acontecimentos, que, por vezes, me obrigou a suspender a leitura para melhor
assimilar tanta informação.
Com o livro viajei por Macondo – essa cidade mítica
criada pela imaginação prodigiosa de Gabriel Garcia Marquez – sem sair do
lugar, viajei por uma América do Sul, de ditadores e gente sonhadora, tão
magistralmente retratada pelo autor, mergulhei numa dimensão onde realidade e
ficção se misturam sem se saber onde termina uma e começa outra – aquilo a que
os entendidos designam por realismo mágico.
A partir daqui não descansei enquanto não percorri,
um a um, todos os livros do autor, num total de vinte e um, e no final senti
essa orfandade que se depara quando nenhum mais há para abrir e para ler pela
primeira vez. Consola-me o facto de, se a vida o permitir, haver sempre uma
segunda oportunidade, porque, como dizia Sophia de Mello Breyner, não havendo
tempo para lermos todos os livros de que gostaríamos, devemos ao menos reler os
que nos fazem felizes.
Com “Cem Anos de Solidão” Gabriel Garcia Marquez abriu
caminho rumo ao Prémio Nobel da Literatura - que viria a receber em 1982 - e,
mais significativo para mim, alcançou um lugar ímpar na galeria onde figuram
apenas os maiores escritores de todos os tempos, os maiores artistas, os
maiores intérpretes, aqueles a quem o talento assistiu de forma invulgar e
avassaladora.
“Cem Anos de Solidão” não é apenas um romance: é,
sem dúvida, um monumento universal, uma ode ao talento, à imaginação e à
capacidade criativa de um autor que o destino condenou, não a cem anos de
solidão, mas à eternidade do tempo.
Professor Carlos Gouveia da Silva
Cem anos de solidão / Gabriel García Márquez : trad. Margarida Santiago. - 1º ed. - Alfragide : Leya, D.L. 2018. - 383 p. ; 19 cm. - Tít. orig.: Cien anos de soledad. ISBN 978-989-660-515-5
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