"Era uma vez uma menina chamada Branca, que vivia pobremente com seus pais e irmãos numa casa em Vila Nova de Gaia, que hoje é cidade, mas na altura era quase uma aldeia, com pinhais, feiras, romarias e caminhos de terra.
Branca, todos os dias, logo pela manhã, ia até so pinhal com sua mãe para apanhar grandes molhos de caruma, para seu pai alimentar o forno de fazer carvão. Era uma família de carvoeiros. E o seu carvão de madeira era conhecido pela excelente qualidade: era duro, compacto, e ao partir tinha reflexos brilhantes tão intensos, que parecia polvilhado de partículas de um cometa!
A casa de Branca era próxima da casa de António Soares dos Reis, um escultor, um professor das Belas-Artes. Era uma casa estranha, a do escultor. Tinha uma janela grande por cima da porta, voltada para a rua, onde Branca nunca via ninguém, nem se abria para arejar a casa! Às vezes saía pela porta pequena uma senhora com um carrinho de bebé com grandes rodas, que Branca admirava.
Um dia, António Soares dos Reis, ao sair de casa, viu a menina sentada no passeio da sua casa, com um vestido branco e um casaaco, já pequeno, de lã rosa. Comia um pão e apoiava-se a um velho cobertor esfiado, que tinha no regaço, onde costumava embrulhar a caruma. As mãos e a cara tinham alguns ferretes de carvão, o que lhe dava um ar engraçado. Parecia um desenho pousado no chão!
Isso foi motivo que estimulou o escultor a fixar a bonita cara de Branca. Parou e perguntou-lhe: "A tua mãe vem aí?"
"vem, sim senhor."
"Queres que eu faça a tua cara em barro?"
"Esta janela não abre?", perguntou Branca, sem perceber.
O escultor não teve tempo de responder, a mãe de Branca aproximava-se, ele dirigiu-se a ela, perguntando se o autorizava a fazer o retrato da sua filha, que tinha um rosto tão fresco, tão gentil, tão puro como uma flor agreste!
Como a mãe de Branca lhe disse logo que sim, ela passou a ir, uma tarde por outra, ao atelier do escultor. Tantas figuras de senhores e senhoras, alinhados em prateleiras altas! Tantos frascos com pincéis e facas de madeira macia! Tanto papel para desenhar! E paus de carvão!
O escultor sentou-a num banquinho de bunho, em cima de um estrado, e começou a moldar um bloco de barro com as mãos. Rapidamente a forma de um rosto, de um pescoço, de uma roupa começou a surgir.Branca admirava aquela rapidez, parecia-lhe magia!
Em poucos dias o rosto ficou acabado, em barro. Depois o escultor iria passá-lo a mármore, a um mármore que vinha de Itália e seria branco, para dizer com o nome e a lama de Branca.
Ao olhar o seu retrato, a menina-flor, como lhe chamava António Soares dos Reis, perguntou:"Eu vou ficar assim para sempre?Não vou crescer?!
"Sim...", disse o escultor, olhando as nuvens transparentes, através da janela grande."
"A flor agreste", in Do outro lado quadro / Mónica Baldaque. Alfragide: Asa, 2010.
Imagem: escultura de Soares dos Reis, "Flor agreste", in Museu Soares dos Reis, Porto.
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