segunda-feira, 27 de abril de 2020

Minutos de Leitura (VI-3.º Ciclo)


"Há muito tempo, quando era um rapaz da tua idade e vivia numa pequena ilha rodeada de castanheiros, oliveiras e carvalhos que conheciam histórias centenárias mas não as contavam a ninguém, a minha forma preferida de dar a volta à ilha e de regressar à Casa do Roseiral era na mota do meu pai.

O meu pai era na altura, na cabeça de um rapaz de dez anos, um herói que tinha participado na guerra em África e tinha matado muitos homens. Era um herói que conhecia os caminhos todos que davam a volta à ilha e os podia fazer de olhos vendados na Famel. Era um herói que - se quisesse - abria os braços e deixava que a mota o levasse a voar por todas as terras que circundavam a ilha onde morávamos.

Desde que chegara da guerra e que prometera à minha mãe que um dia iria levá-la para fora daquela ilha, o meu pai passava os dias na forja ao lado da Casa do Roseiral. Afiava os picos que precisava para cortar o granito ou martelava horas seguidas até dar forma às pedras que usava para fazer os trabalhos que lhe eram encomendados. Encomendavam-lhe alguns trabalhos, embora, na opinião da minha mãe, lhe pagassem muito pouco pelo suor que resultava do esforço. (...)

Fazia muitas pausas, mas acho que as fazia em segredo. É que quando ouvia a minha mãe ou a avó por perto, a subir ou a descer as escadas da Casa do Roseiral para levarem uma encomenda de  roupa nova engomada aos senhores que viviam no Bairro das Andorinhas, o meu pai escondia, apressadamente, as figuras que moldava em pedra ou ferro e fingia que continuava com os seus trabalhos, batendo com uma força desproporcional num pico que ficava sempre de lado para essas ocasiões.

- Não demoro nada. Já volto! - dizia a minha mãe. E partia com um cesto debaixo do braço esquerdo, cheia de vida, a contar as horas até ao dia em que o meu pai a levaria para fora daquela ilha. 

Mal ela dobrava a esquina, ele regressava, com os olhos cheios de fantasia, às suas esculturas. Moldava figuras humanas de tamanho minúscu7lo, que eu colocava em filas, e pequenas armas em ferro para pormos ao ombro de cada uma das figuras. Por vezes, enquanto eu me entretinha a imaginar batalhas nas terras distantes de África, onde ele dizia que tinha combatido, o rosto de uma mulher ou formas estranhas que faziam lembrar pássaros a voar saíam-lhe das mãos.

Mas talvez não fossem pássaros. Talvez fossem motas voadoras que o iriam levar para fora daquela ilha que lhe saía das mãos.

Às vezes, a minha mãe, incitada pela avó, que vivia no Bairro da Capela, numa casa cheia de fotografias de parentes antigos que moravam no Brasil e na América, virava-se par o meu pai:
- Não entendo! O Joaquim saiu no mês passado com a António. Já escreveu a contar que está tudo bem e a Lúcia, em breve, junta-se a ele. Só tu é que... é que nunca mais! Vamos apodrecer aqui! Tu, nessa forja, e eu, na máquina de costura. 

Quando essas conversas aconteciam - e ultimamente aconteciam cada vez com mais frequência -, o meu pai, que era um herói que tinha participado na guerra em África e tinha matado muitos homens, olhava para mim, abria muitos os olhos, encolhia os ombros, pegava na mota, que estacionava ao lado da forja, debaixo do roseiral e, com a cabeça a fantasiar, dizia:
-- Anda! Vamos dar uma volta!"

Volta ao mundo na mota do meu pai / Raquel Ramos; il. a. mar. Porto:  Coolbooks, 2019

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