"Para mim, os poemas eram rendinhas de palavras, umas e outras escolhidas para tudo ficar bonito como se fossem palavras de sair à rua para uma cerimónia. E as suas manifestações juntavam corpos e davam beijos e falavam em fidelidades eternas ou ansiedades. Falavam de uma vontade quase desnatural de ver alguém. Os poemas eram bordadinhos que se estendiam sobre os corpos de quem amava. Podiam ser uma roupa inteira, a única roupa.
Eu tinha onze anos. Inventara os meus amigos imaginários muito tarde (...) punha-me sob as nossas árvores, exactamente à sombra da luz, que era mais rala e escolhia melhor o sol para me aquecer, e eu esperava. Talvez estivesse só à espera de ser mais crescido e de me preocupar com outros assuntos. Não o percebi de imediato.
Numa dessas tardes, sem contar, foi que vi uma menina a passar com flores gigantes de papel. Coloridas e alegres flores de papel. Perguntei-lhe como as fazia. Perguntei-lhe se me ensinaria. Lentamente, gostei da menina como se começasse muito devagarinho um amor. Também sem contar, o monstro triste e o lobo velhinho foram embora. Imaginei que para dentro de metáforas mais complexas onde haveriam de ficar lambuzados e gulosos para sempre. Estariam dentro de coisas absurdas, certamente felizes.
Com o tempo, depois das flores de papel, depois de nadar no riacho, depois de aprender a fazer compota para um lanche no jardim, depois de um primeiro beijo, eu acreditei que todas as coisas que imaginara até então se alegravam por mim. Porque nenhuma tristeza define obrigatoriamente o que podemos fazer no dia seguinte. No dia seguinte, ainda que guardemos a memória de cada dificuldade, podemos optar por regressar à busca das ideias felizes.
Eu comecei pelos poemas de amor. Foi o melhor que me poderia acontecer.
Coloquei os barquinhos de papel numa estante bonita e prometi lutar para que nunca mais ninguém naufragasse nos meus braços. Apenas sorrisse. Eu disse: quero ver as pessoas todas do mundo a rir. Foi o que eu disse, ainda que estivesse4 sozinho no quarto."
Valter Hugo Mãe, "Querido Monstro", in Contos de cães e maus lobos. Porto: Porto Editora, 2013
Imagem: Copyright - Filipe Rodrigues
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