"Já pouco se movem os corpos no fim desta tarde. Ouço vozes que terão vindo de outros lugares.
A
verdade é que isso me incomoda. Prefiro vozes que condigam com aquilo
que olho. De repente, ou do calor ou do vinho, já não sei bem da
geografia do lugar onde me encontro.
Pequenas
palavras caem como pingos de chuva. Pequenas ideias, murmúrios de
sonhos, restos de coisa dita superficialmente. Talvez a minha missão
nesta cidade seja catar estes restos e montar um puzzle maior. Talvez eu
não tenha missão alguma. Talvez eu não esteja aqui. E o pior de não se
estar num lugar é o esforço de definir um outro lugar onde se esteja.
- Usa uma âncora...
A frase antiga, é do meu avô paterno. O pescador.
- Ferra a âncora - ouço-o dizer-me.
Defino, com esforço, que ele esteja aqui comigo.
Agora. Mas a âncora é o presente. Ele talvez seja a canoa. Ou ele - ou eu.
Ancorar-me.
Olhar o que posso ver, ajustar as vozes aos corpos. Encaixar o que foi -
fôr - dito aos corpos que respiram e se movem. Libertar-me do calor e
do peso. Não ser um, mas "mais um".
- Ferra a âncora, agora!
Obedeço.
Humedeço os olhos com o tom da sua voz. Eu queria uma estória. uma
estória de pescador. O que elas têm de mágico é quase sempre fugirem ao
banal. Lembro-me de pensar isto desde criança: são de verdade as
estórias dos pescadores. São sempre simples. São sempre breves.
Límpidas. São belas sem se afastarem da textura do sal. A pele queimada,
limpa: é isso que lembram as estórias dos pescadores.
Ferrei
a âncora. Encontrei sons e sorrisos correspondentes. As vozes
reencontraram-se com as bocas presas aos corpos. Respiro ainda devagar.
Na
curva de uma chávena, vejo o reflexo do meu rosto. Sou uma criança
sentada a rir das estórias breves do meu avô. E outra. e outra mais.
- Há muito silêncio nas tuas estórias. nos teus dias. No teu mar - provoco.
-
É uma âncora. Tu gostas de palavras. Nunca serias pescador. Talvez
poeta. Se eu disser "azul", tu vês o quê? - o meu avô faz uma careta de
pele queimada.
Não respondi. Fiquei quieto. Os corpos moviam-se ao fim da tarde.
Ele insistia com essas palavras em pingos de chuva:
- Eu vejo o céu. Só o meu céu. Azul e simples.
Humedeço os olhos com o tom da tua voz. ele não tinha fugido ao banal. Mas, dito por um pescador, já não era banal.
- para mim "azul" pode ser a parte de dentro das pessoas - murmuro eu.
Ferro a âncora. deixo que a voz reencontre o meu corpo. Talvez eu não esteja aqui, em Moçâmedes, com o meu avô.
De repente, já posso respirar fundo."
Ondjaki. (2014). "Moçâmedes", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.
Imagem - Moçâmedes (http://mossamedes-do-antigamente.blogspot.pt)
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