quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

O livro do mês


 “(…) Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes da paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava percorrer.


Nesse dia, voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento. (…)
Mas a professora sabia já melhor do que eu e decidiu sentar-me na escola no sentido contrário dos meus colegas. Sentou-me na sua mesa, enquanto ela andava de pé a escrever e apagar coisas no nosso quadro. Fiquei de frente para as sete crianças que estudavam comigo. Sete rostos que, com mais ou menos sono, maior ou menor fome, atacavam os ensinamentos da professora como podiam.

Subitamente, enquanto fazia eu também as minhas letras percebi que uma menina se distraíra a ver nada. Via nada como se fosse alguma coisa. Tinha o rosto parado e apontado para o teto e, embora de olhos abertos, ficava estranha, como se adormecida. O rosto dela, ali todo à flor da pele, pareceu-se realmente com o distante da paisagem. Veio à sua expressão uma lonjura que impossibilitava, a quem a visse, perceber com nitidez o que se passava no seu pensamento.

Percebi que dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma, e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes.

O rosto é mais turvo que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exatamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível, para nos conhecermos uns aos outros. Conheci melhor o meu pai.

Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, senão vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes de estar tudo completamente queimado."

O rosto / Valter Hugo Mãe ; il. Isabel Lhano. - 1ª ed. - Carnaxide : Alfaguara, 2010. - 28, [3] p. : il. ; 25 cm. - (Alfaguara infantil). - ISBN 978-989-672-043-8

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