"o escuro às vezes não é falta de luz
mas a presença de um sonho..." - velho muito velho que inventa as palavras
“a beleza às vezes é um lugar onde o olhar já sabe aquilo que não quer esquecer...” - velha muito velha que destrói as palavras
"O silêncio é uma esteira onde nos podemos deitar.
Esteira de poeira cósmica, se eu olhar de novo o céu escuro. Esse azul do céu me lembra o chão do mar. Um mar, afinal, é só um deserto molhado, em vez de homens e camelos, tem peixes e canoas a passear nele. O deserto é parecido com o mar, o mar é parecido com o universo cheio de estrelas pirilampas.
O deserto podia caber no peito do mar, o mar podia caber no corpo do universo, o universo só pode caber no coração das pessoas. A mão dela estava perto da minha. Senti uma comichão de ausência na proximidade daquele calor, sabia que os dedos dela estavam ali, e continuava a falar para não saber, no coração, que todo o meu corpo pedia uma carícia calada.
– Achas que pode caber o quê, no coração das pessoas?
– Muitas coisas. Um poema, uma recordação, um cheiro de infância, um «desejo de estrelas»…
– Como é um «desejo de estrelas»?
– É olhar para uma estrela e desejar uma coisa.
Num susto quase pouco, ela fez-me uma festinha lenta na mão. Ternura e gesto de amansamento.
– Vou-te contar um segredo – ela começou.
– Ainda conta – perdi o pirilampo de vista.
– Dizem que quando um silêncio chega e fica entre duas pessoas…
– Sim?
– É porque passou um anjo e lhes roubou a voz.
– Tu acreditas em anjos?
– Tu não acreditas em silêncios?
Fosse de esquecimento ou não, a mão dela tinha ficado ancorada na minha, concha e búzio nesse silêncio inventado pelos anjos".
Ondjaki, Uma escuridão bonita / Ilustrações de António Jorge Gonçalves. Alfragide: Caminho, 2013.
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