sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Minutos de leitura


 
Azul? Essa cor toda enorme…”
(a criança)

Já pouco se movem os corpos no fim desta tarde. Ouço vozes que terão vindo de outros lugares.
A verdade é que isso me incomoda. Prefiro vozes que condigam com aquilo que olho. De repente, ou do calor ou do vinho, já não sei bem da geografia do lugar onde me encontro.

Pequenas palavras caem como pingos de chuva. Pequenas ideias, murmúrios de sonhos, restos de coisa dita superficialmente. Talvez a minha missão nesta cidade seja catar estes restos e montar um puzzle maior. Talvez eu não tenha missão alguma. Talvez eu não esteja aqui. E o pior de não se estar num lugar é o esforço de definir um outro lugar onde se esteja.

- Usa uma âncora...
A frase antiga, é do meu avô paterno. O pescador. 
- Ferra a âncora - ouço-o dizer-me.

Defino, com esforço, que ele esteja aqui comigo.
Agora. Mas a âncora é o presente. Ele talvez seja a canoa. Ou ele - ou eu.
Ancorar-me. Olhar o que posso ver, ajustar as vozes aos corpos. Encaixar o que foi - fôr - dito aos corpos que respiram e se movem. Libertar-me do calor e do peso. Não ser um, mas "mais um".

- Ferra a âncora, agora!
Obedeço. Humedeço os olhos com o tom da sua voz. Eu queria uma estória. uma estória de pescador. O que elas têm de mágico é quase sempre fugirem ao banal. Lembro-me de pensar isto desde criança: são de verdade as estórias dos pescadores. São sempre simples. São sempre breves. Límpidas. São belas sem se afastarem da textura do sal. A pele queimada, limpa: é isso que lembram as estórias dos pescadores.

Ferrei a âncora. Encontrei sons e sorrisos correspondentes. As vozes reencontraram-se com as bocas presas aos corpos. Respiro ainda devagar.
Na curva de uma chávena, vejo o reflexo do meu rosto. Sou uma criança sentada a rir das estórias breves do meu avô. E outra. e outra mais.

- Há muito silêncio nas tuas estórias. nos teus dias. No teu mar - provoco.
- É uma âncora. Tu gostas de palavras. Nunca serias pescador. Talvez poeta. Se eu disser "azul", tu vês o quê? - o meu avô faz uma careta de pele queimada.
Não respondi. Fiquei quieto. Os corpos moviam-se ao fim da tarde.
Ele insistia com essas palavras em pingos de chuva:
- Eu vejo o céu. Só o meu céu. Azul e simples.

Humedeço os olhos com o tom da tua voz. ele não tinha fugido ao banal. Mas, dito por um pescador, já não era banal.
- para mim "azul" pode ser a parte de dentro das pessoas - murmuro eu.
Ferro a âncora. deixo que a voz reencontre o meu corpo. Talvez eu não esteja aqui, em Moçâmedes, com o meu avô.
De repente, já posso respirar fundo."

"Moçâmedes", in Sonhos azuis pelas esquinas / Ondjaki. Lisboa: Caminho, 2014.
Imagem - Moçâmedes (http://mossamedes-do-antigamente.blogspot.pt)

Minutos de leitura

"No rochedo mais alto de uma minúscula ilha
nos confins do mundo, ergue-se um farol.
Foi construído para durar para sempre,
alumiando o mar com a sua luz,
guiando os navios que passam.

Do crepúsculo ao amanhecer, o farol relampeja.
   ...Olá!
      ...Olá!
         Olá, Farol!

Chega o novo faroleiro para substituir o antigo
e continuar a cuidar da luz.
Ele limpa as lentes e acrescenta petróleo
e apara a ponta queimada do pavio.
Durante a noite, dá corda ao mecanismo
que mantém o candeeiro em movimento.
Durante o dia, pinta as divisões redondas
com tinta verde-mar.
Ele escxreve no diário do farol, cose à mão
e escuta o vento que se levanta lá fora.

O vento inspira fundo e sopra.

   ...Olá!
      ...Olá!
         ...Olá!"

Olá Farol / Sophie Blackall. Amadora: Fábula, 2019.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Biblio@rs - a civilização romana (II)

                                              

                                             A Civilização Romana  - O tempo

A Civilização Romana foi uma das grandes construções do período Clássico. As suas marcas e presença em séculos posteriores foi tão relevante que a sua influência ainda persiste em alguns aspetos no mundo contemporâneo. O espaço e o tempo que a marcaram mudaram muito e é sobre essas duas instâncias em que ela se criou que falaremos nesta e na próxima publicação.

A Civilização Romana estende-se desde o século VIII a.C. e prolonga-se no Ocidente até ao século V. A Itália foi habitada desde 4000 a. C., isto é desde o Neolítico. Os povos que a habitaram tinham costumes e língua próprias. A fundação de Roma, futura capital de um Império terá sido fundada ainda na Idade do Ferro, ou seja pelo século X a. C.

A Grécia de que já se falou antes em pormenor e que está disponível nesta mesma etiqueta (Biblio@rs) instalaram-se no sul da Península Itálica, fundaram um espaço conhecido como "Magna Grécia" e deram aos povos aí instalados uma forte influência da Civilização Helénica. Os Cartagineses, os Etruscos e os Gregos moldaram em diversos aspetos o que seria a futura Civilização Romana.

A cidade de Roma era no século VIII a. C. um território pouco povoado que se situava junto ao rio Tibre. Este povo, o romano expandiu-se para o resto da Península Itálica de um modo lento e gradual afirmando-se desde o século V a. C., e o século II, altura em que o Império atingiu  a sua máxima expressão territorial. 

A construção de um vasto império obrigou a que se erigisse um conjunto de fronteiras para que a dominação económica e política fossem asseguradas. A partir do século V, as invasões de um conjunto de povos, chamados "bárbaros" levaram à queda do Império Romano do Ocidente. O império manteve-se a oriente com características diferentes até ao século XV e à queda de Constantinopla.

Uma das características mais extraordinárias da Civilização Romana é que o seu fim material, enquanto sociedade de um determinado tempo não significou o fim de um rico património cultural. Na verdade ele vai sobreviver como um legado por muitos séculos e um dos mais interessantes foi a sua língua, do qual derivaram as línguas românicas. Estas línguas foram um instrumento de grande riqueza cultural e de construção de um direito e de uma literatura de grande significado civilizacional.

         Imagem: Copyright - Teatro romano de Cartagena, Múrcia: Espanha

Minutos de leitura


 "A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, um mundo. O rumor das ondas, o perfume do sal, o vidrado da luz marinha, o ar varrido de brisas e vento, a cal do muro estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuoso e limpos onde tudo se abre e vibra.
A casa é construída de pedra e cal e a sua frente está virada para o mar.
No andar de cima da fachada há três janelas e uma varanda com grades de madeira. No andar de baixo há três janelas e uma porta. Essa porta, as janelas e as grades da varanda estão pintadas d e verde. No chão, ao longo da parede, corre um passeio de pedra que separa a casa das areias da duna. (...)
Entre a casa e a cidade longínqua estendem-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem também os lírios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias.
Dentro da casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar.
A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir de louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa - é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelho. Nela cada coisa é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada. (...)
Nas paredes brancas reflecte-se uma grande claridade de areal e o sabor das algas, como um grito de contínua alegria, invade todos os espaços, gavetas, armários, roupas, caixotes, livros. Aqui, de manhã, se é acordado por um marulho de vaga e o dorso do mar coberto de brilhos cintila entre as persianas como um peixe na rede. O fulgor exterior assedia as orlas da penumbra. No centro vazio do quarto pode-se dançar. Os gestos deslizam entre o animal e a flor como medusas.
E, às vezes, de súbito, uma gaivota atravessa, sem o quebrar, o vidro dos espelhos. Porém, como um jardim Zen, o quarto é também um lugar de contemplação. A luz é lisa. O espaço está atento, o silêncio imóvel. Mas esse silêncio e essa atenção recebem em si a larga respiração oceânica que no quarto implanta seu tumulto ébrio e lúcido. (...)
Mas quem do quarto central avança para a varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra o seu rosto e sua evidência.
Pelo gesto de dobrar o pescoço e de sacudir as crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no contínuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. O tombar da rebentação povoa o espaço de exultação e clamor. No subir e descer da vaga, o universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzidias, maresias e brumas sobem como um incenso de celebração.
E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado."
"A casa do mar", in Histórias da Terra e do Mar / Sophia. Porto: Figueirihas, 2006.
Ilustração: Copyright - Da capa do livro, Dia do Mar.

Minutos de leitura


Quando a maré está vaza brincamos nas rochas, quando está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos-marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azul-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia fina, branca, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado. Mas eu sou uma menina do mar. Posso respirar dentro de água como os peixes e posso respirar fora de água como os homens. E posso passear pelo mar todo e fazer tudo quanto eu quero e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Grande Raia. E a Grande Raia é a dona destes mares. É enorme, tão grande que é capaz de engolir um barco com dez homens dentro. Tem cara de má e come homens e peixes e está sempre com fome. A mim não me come porque diz que eu sou pequena de mais e não sirvo para comer, só sirvo para dançar. E a Raia gosta muito de me ver dançar. Quando ela dá uma festa, convida os tubarões e as baleias s sentam-se todos no fundo do mar e eu danço em frente deles até de madrugada. E quando a Raia está triste ou maldisposta eu também tenho que dançar para a distrair. Por isso sou a bailarina do mar e faço tudo quanto eu quero e todos gostam de mim. Mas eu não gosto nada da Raia e tenho medo dela. Ela detesta os homens e também não gosta dos peixes. Até as baleias têm dedo dela. Mas eu posso andar à vontade no mar e ninguém me come e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Raia. E agora que já te contei a minha história leva-me outra vez para o pé dos meus amigos que devem estar aflitíssimos.

A Menina do Mar / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. Fernanda Fragateiro. Porto : Porto Editora. 
Imagem: Copyright – Fernanda Fragateiro

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Minutos de leitura


Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia.

As palavras que disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Com vêm as ondas com o vento.

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e de conheciment

"Iremos juntos sozinhos pela areia", in  Obra Poética / Sophia de Mello Breyner Andresen. Alfragide: Caminho: 1999.

Minutos de leitura


"Ao longe se avistam algumas traineiras…
E as rochas que teimam
em não deixar o mar passar.

Essa guerra constante…
Tantas vezes apagaram vidas,
Essas ondas pecadoras...

E do Cabo Carvoeiro
Ainda se sente o cheiro
Das gerações pescadoras.

Memórias levadas pelo vento,
E trazidas novamente
pelo canto das gaivotas esfomeadas,
Que anseiam no areal,
As traineiras carregadas.

O seu canto mistura-se
com o canto das sereias
Que afastam os pássaros das areias,
E que fogem para o céu.

Estas águas que mancham o mundo
De um azul-esverdeado.
Que pelos cantores foi cantado
E por pintores foi pintado.

E quem por aqui haveria de passar,
A luz do sol haveria de guardar,
E o cheiro a maresia haveria de sentir.

E quem por este mar passou
E por esta terra andou,
Peniche lhe chamou…"


João Fortunato, 2013. 
Imagem: Cabo Carvoeiro, um dos extremos sudoestes da Península Ibérica.