terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Palavras importantes


Entre 1933 e 1945, mataram seis milhões dos meus. Muitos com um tiro. Muitos queimados nos fornos crematórios, asfixiados nas câmaras de gás ou mortos de fome. A mim não me mataram.

Nasci em 1944.
Não sei o dia.
Não sei que nome me deram.
Não sei em que cidade nem em que país vim ao mundo.
Tampouco se tive irmãos.

O que sei é que quando tinha apenas uns meses salvaram-me do Holocausto.
Muitas vezes tento imaginar como era a vida da minha família e como foram as últimas semanas que passei com eles. Penso nos meus pais privados de tudo o que tinham, expulsos da sua casa e transferidos para um gueto.

Mais tarde, quem sabe talvez nos tirassem do gueto. Os meus pais deviam estar impacientes por abandonarem aquele bairro da cidade rodeado por arame farpado em que os tinham fechado, por fugirem do tifo, da acumulação, da sujidade e da fome. Mas imaginavam onde iam acabar?

Disseram-lhes que os iam tranaferir para um lugar melhor? Prometeram-lhes trabalho e comida?
Ouviram falar dos campos da morte?

Ponto de partida para falar do Holocausto a um conjunto de alunos do 9.º ano de Auschwitz. O seu silêncio tumular, o programa do nazismo e a solução final. Ponto de partida para falar do silêncio de muitos e dos justos que souberam erigir uma voz de combate, como Aristides de Sousa Mendes. Ponto de partida para falar, ainda que ao de leve da dor antiga, da humilhação e da vida perdida. Ponto de partida para escolher algumas palavras desta História de Erika. 

Após a leitura e exploração visual os alunos consideraram como as palavras mais fortes ou com mais sentido nesta mensagem, as seguintes: Imaginar, cuidar, comboio, destruição e estrela.
(com os alunos do 9.º FB)

Nascente Escolar - janeiro de 2020

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Memória e cidadania - A memória do Holocausto - Os livros (IV) - exposição temática

  

  

 

  


Os livros dão-nos a memória do que representou em todos os momentos da existência, o Nazismo e a sua ideologia de extermínio a milhões de pessoas. Do trabalho, à vida pública, às relações sociais, à possibilidade de viver em família, aos gestos mais particulares e íntimos de uma pessoa houve repercussões que o gravaram como a mais baixa forma de existência da Humanidade. Deixamos alguns dos possíveis livros que nos dão essa proximidade do que foi o desespero de milhões de pessoas. Alguns deles estão em mostra na Biblioteca na exposição feita para homenagear uma memória e a mais inexplicável história humana.


Memória e cidadania - A memória do Holocausto - Os livros (III)

"Estou sentada em cima da minha mochila, no centro de um vagão cheio, e preciso de te ajudar, meu Deus. (...)
Estou sentada em cima da minha mochila, o vagão trepida, as crianças dormem e os velhos velam,  e eu vou no transporte e penso que tenho de te ajudar, meu Deus. Tu não tens forças para nos socorrer, por isso eu preciso de vir em teu socorro. Porque tu estás reduzido a tão pouco, e não podes valer a todos, então eu preciso de te dar as minhas forças. Precisas de ajuda, meu Deus, porque estás ferido e exangue. Precisas que eu trate de ti, que te vele, que te dê um pouco do calor que guardo em mim, dentro das camisolas de lã. Que eu guarde este calor por ti, dentro de mim.

Eu queria ser o coração pensante dos barracões, meu Deus, porque todos os outros estavam tão ocupados, sempre mais atarefados do que eu. Porque os outros tinham filhos pequenos e os pais a morrerem, e estavam terrivelmente assustados. Mas eu não tinha medo, podia pensar por eles. Podia levar os pensamentos deles até ti, meu Deus, como um correio que não abrisse as cartas para as censurar. Queria ser o coração pensante, quando os outros não tinham tempo para pensar, à procura de comida, agasalho e notícias. E queria ajudar-te a pensar com eles, pensar os pensamentos deles.

Eu ajoelhava em frente ao urzal, meu Deus, o urzal atrás do arame farpado. E tu estavas ali, pobre, atrás do arame farpado. Os raios de sol nas urzes, na água gelada, atrás do arame farpado.
Deixa-me agora ser o coração do vagão, meu Deus. 
Estão demasiado cansados, mal conseguem falar. Mas se eu levar o meu pensamento pela noite fora, toda a viagem de comboio, até ao fim, é como se guardasse um pouco de calor, intacto, por nós todos. Deixa-me guardar o resto do pensamento. Mesmo  a tremer, mesmo a cair de cansaço ainda hei-de conseguir um pouco de força para te amparar. (...)

Eu aceito tudo , meu Deus. Continuo a ajoelhar, e ajoelharei no vagão e no campo, como ajoelhei em frente ao urzal. Se eu não te ajudar, meu Deus, quem te levará até à morada da morte?
Espreito pela frincha, o ar entra, tudo está morto. Montanhas e florestas.
Tenho tudo dentro de mim, mesmo quando é tão difícil.

Partimos de Westerbork há dois dias. Como se a viagem durasse anos de vida. Pode-se envelhecer vidas inteiras num vagão, durante uma noite. Todos nós, mesmo as crianças, somos agora muito velhos. Com mais velhice do que cabe numa vida. Amanhã chegaremos ao campos, e ninguém sabe o que acontecerá. Correm rumores horríveis. mas seja o que for que nos espera, meu Deus, eu aceito. Mesmo na morada da morte te ajudarei.

Olho pela frincha. Lá em cima, a Ursa Maior, clara, nítida, e fria. Que nos acompanha desde a partida. Por que é que as estrelas andam quando eu ando, perguntou-me uma criança em Westerbork, e param quando eu paro?
Uma pequena força dentro de mim. 

As estrelas brilham sobre a neve. Uma claridade branca começa atrás dos montes, o dia nasce do lado para onde o transporte avança. Vejo um caminho, uma casa. Um regato gelado. Luzes ao longe, uma cidade. Uma placa a indicar a direcção. 
Consigo ler a placa: "Leipzig".

E a neve recomeça a cair.
Uma pequena força, meu Deus, dentro de mim.

Pedro Eiras. "Etty Hillesum", in 
Bach / Pedro Eiras. - Reimp. - [Porto] : Assírio & Alvim, 2015. - 157, [2] p. ; 21 cm. - (A phala ; 50).
Imagem - Capa do livro que junta os Diários de Etty Hillesum (1941-43) e que como Anne Frank vivia em Amesterdão; Copyright - persephonebooks

Memória e cidadania - A memória do Holocausto - Os livros (II)


“ (…) um operário civil italiano (Lorenzo) trouxe-me um bocado de pão (…), todos os dias, durante seis meses; ofereceu-me uma camisola sua cheia de remendos; escreveu por mim um postal para Itália e fez-me chegar a resposta. Por tudo isto, não pediu nem aceitou alguma compensação, porque era bom e simples, e não achava que o bem devesse fazer-se para obter compensações. (…)

Creio que devo justamente a Lorenzo o facto de estar vivo hoje; não tanto pela sua ajuda material, quanto por me ter constantemente lembrado com a sua presença, com a sua maneira tão linear e fácil de ser bom, que ainda existia um mundo justo para além do nosso, algo e alguém ainda puro e incontaminado, não corrupto e não selvagem alheio ao ódio e ao medo; algo que mal se pode definir, uma remota possibilidade de bem, pela qual, porém, valia a pena conservar-se.

As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem. Os SS maus e estúpidos, os políticos, os criminosos, os proeminentes grandes e pequenos (…) todos os degraus da insana hierarquia criada pelos Alemães, estão paradoxalmente unidos numa única desolação interior.

Mas Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura e incontaminada, estava fora deste mundo de negação. Graças a Lorenzo, aconteceu-me não esquecer que também eu era um homem”.

Se isto é um homem / Primo Levi ; trad. Simonetta Cabrita Neto. - 15ª ed. - Alfragide : D. Quixote, 2017. - 185, [6] p. ; 24 cm. - Tít. orig. : Se questo è un uomo. - ISBN 978-972-20-5402-7

Lembrar as vítimas do Holocausto

Memória e cidadania - A memória do Holocausto - Os livros (I)


"Nunca nenhum de nós se tinha encontrado numa situação tão perigosa como a da noite passada. Deus protegeu-nos. Imagina a Policia a remexer na estante da nossa porta giratória, iluminada pela luz acesa, sem dar connosco! Em caso de invasão, com bombardeamentos e tudo, cada um de nós pode responder por si próprio. Neste caso, porém, não se tratava só de nós, mas também dos nossos bondosos protectores.

Estamos salvos. Não nos abandones! É apenas isto que podemos suplicar.Este acontecimento trouxe consigo algumas modificações. O sr. Dussel já não trabalha à noite no escritório do Kraler mas sim no quarto de banho. Às oito e meia e às nove e meia o Peter faz a ronda pela casa. Já não pode abrir a janela durante a noite. Depois das nove e meia não podemos utilizar o autoclismo do W.C. Hoje à noite vem um carpinteiro reforçar as portas do armazém. Há discussões a tal respeito, há quem pense que não se devia mandar fazer isso.

O Kraler censurou a nossa imprudência e também o Henk disse que não devíamos em tais casos descer ao andar de baixo. Fizeram-nos ver bem que somos «mergulhados», judeus enclausurados, presos num sitio, sem direitos, mas carregados de milhares de deveres. Nós, judeus, não devemos deixar-nos arrastar pelos sentimentos, temos de ser corajosos e fortes e aceitar o nosso destino sem queixas, temos de cumprir tudo quanto possível e ter confiança em Deus. Há-de chegar o dia em que esta guerra medonha acabará, há-de chegar o dia em que também nós voltaremos a ser gente como os outros e não apenas judeus.

Quem foi que nos impôs este destino? quem decidiu excluir deste modo os judeus do convívio dos outros povos? quem nos fez sofrer tanto até agora? Foi Deus que nos trouxe o sofrimento e será Deus que nos libertará Se apesar de tudo isto que suportamos, ainda sobreviverem judeus, estes servirão a todos os condenados como exemplo. Quem sabe, talvez venha ainda o dia em que o Mundo se aperceba do bem através da nossa fé, e talvez seja por isso que temos de sofrer tanto. Nunca poderemos ser só holandeses, ingleses ou súbditos de qualquer outro pais. Seremos sempre, além disso, judeus. E queremos sê-lo.

Não percamos a coragem. Temos de ter consciência da nossa missão. Não nos queixemos, que o dia da nossa salvação há-de chegar. Nunca Deus abandonou o nosso povo. Através de todos os séculos os judeus sobreviveram. Através de todos os séculos houve sempre judeus a sofrer, mas através de todos os séculos se mantiveram fortes. Os fracos desaparecem mas os fortes sobrevivem e não morrerão!

Naquela noite pensei que ia morrer. Esperava pela Policia, estava preparada como os soldados no campo de batalha, prestes a sacrificar-me pela pátria. Agora que estou salva, o meu desejo é naturalizar-me holandesa depois da guerra. E Gosto dos holandeses, gosto desta terra e da sua língua. É aqui que gostava de trabalhar. E se for preciso escrever à própria rainha, não hei-de desistir enquanto não conseguir este meu fim.

Sinto-me cada vez mais independente dos meus pais. Embora seja muito nova ainda, sei, no entanto, que tenho mais coragem de viver e um sentido de justiça mais apurado, mais seguro do que a mãe. Sei o que quero, tenho uma finalidade, uma opinião, tenho fé e amor. Deixem-me ser eu mesma e estarei satisfeita. Tenho consciência de ser mulher, uma mulher com força interior e com muita coragem.

Se Deus me deixar viver, hei-de ir mais longe de que a mãe. Não quero ficar insignificante. quero conquistar o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade.
O que sei é que a coragem e a alegria são os factores mais importantes na vida!"

(Excertos do diário de Anne Frank, um dos muitos testemunhos sobre a representação no quotidiano do Holocausto e da ameaça aos judeus).